Ontem, 15, passava de sete da noite. 

O poster tomava tacacá, na praça Duque de Caxias. Num banco da praça, um casal namorava.

Beijava-se.

Beijo apaixonado, que fez lembrar o estonteante beijo do casal de amantes do “Jogo da Amarelinha”, do Cortázar.

Bem ali, de repente, a imagem descrita pelo escritor belga criado na Argentina,  brotou.  

De lampejo.

Quem lê Cortázar, fica sempre com algo marcado, como uma sonoridade gravada, repetindo-se.

 

Toco sua boca, com um dedo toco o contorno de sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo de minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar.

Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto e, que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você.”


O beijo do casal da praça de Marabá, loucamente apaixonado na noite de sexta-feira, trouxe a poesia de Júlio, para refletir; e acordar. Para discordar do panorama geral, recriando a humanidade adormecida em silêncio e medo. 

“Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se aproximam um dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas se encontram e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem como um perfume antigo e um grande silêncio”.

 

Ritmo é tudo em Cortázar, que antes de dar um texto seu como pronto, declamava-o em voz alta para ver se tinha ritmo.

O ritmo, e mesmo o timbre, da voz do Cortázar real corresponde exatamente ao ritmo e timbre do Cortázar de minha cabeça. 

 

“Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, cariciar lentamente a profundidade de seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela”. 


Mérito da literatura dele, que soube como ninguém projetar-se no papel através de seus personagens.


“E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.”

O beijo do casal da praça Duque de Caxias, alheio aos tagarelas passantes, tinha ritmo. Como os beijos dos contos de Júlio, nos ensinando que a literatura perpetua imagens, quando o texto é refinadamente perfeito.