Vera LuciaSempre é bom saber da vida de Oscar Niemeyer, inda mais contada por alguém que viveu 40 anos ao lado dele.

A viúva Vera Lúcia falou pela primeira vez, abertamente, de seu relacionamento com o arquiteto, à coluna da sempre bem informada Mônica Bergamo.

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Ainda é difícil para Vera Lúcia Guimarães Niemeyer, 67, acertar o tempo verbal quando conta alguma história sobre o marido, Oscar Niemeyer, morto em dezembro aos 104 anos. Ao mostrar uma caixinha de música que entoa a “Internacional” comunista, em uma estante do escritório, pega-se mais uma vez falando no presente. “O Oscar adora esse brinquedinho.” Pausa. “Quer dizer, ele adorava”.

A dor da perda do homem com quem foi casada seis anos e conviveu por quase 40, “não passou”. Assim como não passa a vontade de chorar ao se recordar das últimas palavras do marido para ela. “Ele andava muito calado. Aí pediu pra enfermeira: ‘Tira isso daqui!’. Era a máscara de oxigênio. Segurou meu rosto e falou: ‘Minha Vera querida'”, recorda-se, com lágrimas nos olhos.

O encontro do casal, que na intimidade se chamava de “bebê”, aconteceu em 1974. Ela tinha ido trabalhar na revista “Módulo”, do arquiteto. “Ficamos muito próximos. Era uma relação muito afetiva, muito boa”, diz à repórter Lígia Mesquita.

Em 1989, dona Vera conta que quis pedir demissão. Niemeyer não deixou. E, naquele momento, ela descobriu estar apaixonada. “Ele dizia que eu era importante, que não podia sair, mas eu não via por que era importante. Aí descobri que era. E ele passou a também ser pra mim”, afirma. “Cada dia com o Oscar era diferente.”

Quando a revista fechou, virou secretária do escritório. O casamento só aconteceria no dia 16 de novembro de 2006. Dois anos depois de ele ter ficado viúvo de Annita Baldo. Com a primeira mulher, Niemeyer viveu 76 anos e teve sua única filha, Anna Maria, que morreu aos 82 anos, seis meses antes do pai.

“Nunca tinha me casado. E disse a ele que só me casaria se fosse com ele.” Aos 98 anos, pediu mão dela, então com 61. “Fiquei preocupada e ao mesmo tempo contente. Naquele momento, ele estava se sentindo muito sozinho e eu não estava fazendo companhia a ele como eu queria.”

Os seis anos casados, afirma, foram ótimos. E a convivência com um dos maiores arquitetos do mundo, foi de aprendizado. “Ele me ensinou a ver o mundo diferente, a tratar as pessoas diferente, a ter uma concepção de vida diferente da que eu tinha.”

Mas o novo estado civil também lhe causou apreensão. “Ele era uma pessoa pública, as pessoas queriam saber da nossa vida. E eu não gosto de ficar falando.”

Antes de oficializar a união, diz nunca ter ficado preocupada com comentários de que o arquiteto teria tido uma relação extraconjugal com ela até sua primeira mulher morrer.

“Essa preocupação poderia ser dele, não minha. Ele tava casado, era conhecido. Eu era solteira, nunca fui conhecida. Pra mim era fácil, pra ele era mais difícil”, afirma. “Sabíamos que eu gostava dele e ele, de mim. E todo mundo sabia que estávamos juntos. Ele nunca escondeu.”

A reação da filha e dos demais herdeiros de Niemeyer -cinco netos, 13 bisnetos e quatro trinetos- ao romance é assunto sobre o qual não fala. “Não tenho nada contra eles e eles não têm nada contra mim, acho.”

Entre os programas prediletos do casal, antes e depois do casamento, era sair para jantar com os amigos. Também iam ao teatro e a shows como de Jorge Aragão e “todos do Chico [Buarque]”.

Niemeyer também organizava saraus no escritório. Ao piano, o engenheiro José Carlos Sussekind. “E eu fazia as vezes de ‘crooner’. Oscar me pedia para cantar ‘Gente Humilde'”, diz ela, referindo-se à canção de Vinicius de Moraes e Chico Buarque.

O companheiro era um cavalheiro. Abria a porta do carro, puxava a cadeira para ela se sentar, dava flores no Dia da Secretária e joias no aniversário. “Ele sabia fazer as coisas como nós mulheres gostamos [risos].”

Com 37 anos a menos que o marido, diz que o pique dele era muito maior que o seu. E que nunca sentiu essa diferença de idade. “Foi tudo de bom. O que ele me ensinou, eu não aprenderia com nenhuma outra pessoa.”

Fisicamente, os anos parecem não ter pesado. “Ele era muito ativo. Às vezes minha irmã falava: ‘Mas não é possível [ele estar tão bem]’. Sou testemunha de que é possível uma pessoa com mais de cem anos estar completamente bem, [do ponto de vista] sexual e tudo.”

E sem tomar nenhum aditivo? “Remédio pra isso [sexo] ele não tomava [risos]. Ele tinha medo de fazer mal.”

O arquiteto, diz, tinha ótima saúde. Andava de cadeira de rodas por precaução. Enxergava e escutava bem. Mas só o que queria. “Quando chegava alguém pra mostrar um livro e ele sabia que era uma besteira, Oscar falava: ‘Desculpe, filho, não tô enxergando!’ [risos].”

Ele não temia a morte, segundo Vera. Mas tinha medo de avião e pavor de barata.

No escritório, no Rio, a viúva mostra à coluna o local onde um trabalhava de costas para o outro. “Ele falava: ‘Vera, você tá tão longe’. E eu atrás dele”, ri. “É muito difícil vir aqui. Era a segunda casa dele, talvez a primeira.”

Na sala com vista para a praia de Copacabana, tinham aulas de filosofia e de cosmologia às terças-feiras. Oscar era fascinado pelo Cosmo. “Ele dizia: ‘O Universo ensina a gente a ser mais humilde, somos tão pequenos perto dele’.” Na filosofia, gostavam de linhas diferentes. “Ele dizia que era mais pra Schopenhauer. Eu achava muito materialista. Sou mais epicurista [de Epicuro], mais realista.”

Vera segue administrando o escritório, “enquanto o testamento não é aberto”. Vive de sua aposentadoria e diz que o marido lhe deixou algum dinheiro. Mora no imóvel que o casal dividia, em Ipanema. “É a única coisa que a lei me favorece, o apartamento onde eu moro. O resto tá lá pros netos”, afirma.

Quando se casaram, Niemeyer teria dito a amigos que gostaria de deixar algum bem para Vera. Por lei, quando um dos cônjuges tem a partir de 70 anos, o casamento é obrigatoriamente com separação de bens, para evitar união por interesse. “Ele podia pensar, mas não podia fazer. E não tô preocupada. Não estava com ele por causa disso.”

Nas paredes do escritório de Niemeyer, um único retrato está exposto. O de Luís Carlos Prestes, com a assinatura do líder comunista.

A foto revela a faceta de um marxista convicto. “O Fidel [Castro] na Eco 92 disse que ele era o último comunista do país. O Darcy Ribeiro falava também”, diz. “O Oscar sempre foi coerente. Ele saiu do partido [PCB], mas continuou a pensar e a agir como comunista. Queria ajudar as pessoas, discutir os problemas do Brasil.”

Ela conta que o velho comunista gostava do governo Dilma Rousseff. “E do governo Lula, sobretudo. Ele admirava um operário no poder.”

Quando a mulher comentava algo sobre o escândalo do mensalão, ele tinha resposta: “Não sou da polícia, não investigo ninguém”. E falava que se o ser humano tivesse 10% de bondade e de seriedade, “tava bom demais”.

Ela viu o marido chorar uma vez. “Por incrível que pareça, não foi quando a filha morreu. Ele colocou algo na cabeça para não pensar nisso [naquela hora]”, diz. As lágrimas rolaram quando o médico Paulo Niemeyer, irmão de Oscar, morria. “Perguntei por que ele chorava. E ele respondeu: ‘É triste ver as pessoas que você ama partir’.”