Foi numa madrugada de outubro de 1975 que ouvimos a primeira vez a voz daquele rapaz magrinho, tímido por natureza,  a nos acompanhar, caladinho, na boemia terminada sempre na Praça do Carmo, na Cidade Velha.

No dia em que soubemos da morte de Vladimir Herzog.

Todos cinco amigos ali em frente à entrada principal  do Colégio do Carmo, sentados num banco, embriagados de sonhos.

Entre choros e discursos inflamados, falávamos em ir embora do Brasil, viver na Argentina ou Chile.

Joãozinho, mais novo do que a maioria da turma, de repente, entrou em cena.

Tentando nos acalmar, construiu uma frase que depois ficaria famosa entre nós:

 

              A liberdade floresce sempre da escuridão. Se a gente for embora, quem fica para combater a ditadura?

Ninguém nunca mais pensou em atravessar a fronteira.

Passados 34 anos daquele triste noite, a casualidade permitiu o reencontro meu com Joãozinho, na orla de Marabá, no final da tarde de sábado.

Era preciso o reencontro, para lembrar dos poetas e músicos que nos rodeavam, na fase mais dura do rochedo militar.  Para dizer, de novo, das canções e versos muito diferentes da linguagem  falada pela maioria submissa, entocada pelo medo em suas casas.

Era preciso o reencontro, lembrar dos tamborins usados nas batucadas de rua, sentados de cócoras  sobre a relva a permear  a pracinha de Marapanim, de frente pro mar.

Cada um de nós lançando gritos roucos, compondo canções  com a mesma forma e métrica. E o sentido sempre de apelo à liberdade.

No tempo em que a rua era nossa religião -, lembrou bem Joãozinho, no inicio da noite de ontem.

Nossas canções não eram canções de sensualidade, de gozo. Eram versos de protesto, canções contra a fome. Canções que falavam de quem estava nas prisões do país.

Também lembrou o agora grisalho companheiro: muitos de nossos antigos amigos, também poetas e músicos, tomaram novas estradas, revisaram sonhos. Alguns até condenados foram; outros, sem forças para dominar a loucura de suas aspirações, não saíram nunca das drogas, permanecendo nelas, até a morte, com seus olhares sombrios.

Porque eles queriam – filosofa Joãozinho, agora grisalho – sublevar-se contra a miséria e  contra os  deuses.

Àquela época que nos foi reservada viver nossa juventude, tinha, sim, um pouco da poesia universal.

Mas faltava-nos o essencial: o ar puro das liberdades.

Quando nos despedimos, passava das 7 da noite.

Joãozinho precisava pegar a estrada com dois amigos rumo a São Luís, onde constituiu família.

Antes, nos abraçamos demoradamente, lembrando o grito de guerra ensinado  por Geraldo Vandré, que cantamos, juntos, de frente pro Tocantins:

 

“No terreiro lá de casa

Não se varre com vassoura

Varre com ponta de sabre

Bala de metralhadora”