Numa época em que as mulheres brasileiras viviam trancadas em casa, submetidas aos pais, maridos, ou mesmo irmãos, uma marabaense impôs vida diferente. Tão diferente que, para os padrões de uma cidade com pouco mais de dois mil habitantes, nos anos 50, tudo o que ela fazia era motivo de comentários de ampla repercussão nas salas mais nobres do meio primitivo em que vivia.

Eu costumo dizer que Lourdinha, nosso personagem, foi a primeira feminista paraense, mesmo sem saber por onde começava esse barato de lutar pelos direitos femininos.

Em verdade, ela lutava, basicamente, pelos dela. E dos familiares, que até hoje defende com extrema paixão. Como cão de guarda.

Inconsciente, a baixinha de 1,40m rompia barreiras intransponíveis de uma sociedade terrivelmente machista, cujos negócios giravam em torno da exploração, primeiramente, do caucho, depois de diamantes, até os áureos tempos da castanha – onde Marabá despontava como o maior produtor mundial.

Quem viveu aquele tempo dourado dos igarapés apinhados de barcos transportando castanha, conta até hoje da figura destemida daquela mulher de calça comprida, botas, chapéu de palha, e um par de revólver na cintura, dando ordens firmes a homens rudes que viviam no vai-e-vem das águas, trabalhando no auge da safra.

Quem a conheceu na cidade, lembra dela dirigindo um Jeep-54, com roupas masculinas e seu inseparável chapéu de palha, brigando nos barracões dos compradores de castanha contra as medidas abaixo do normal nos hectolitros (unidade de volume equivalente a cem litros) de madeira.

Da baixinha, há sempre uma história pra contar da mulher corajosa que só tinha um objetivo na vida: educar os filhos, mesmo que distantes quase sempre deles, e nunca deixar ao desalento outros familiares. Esse foi o discurso dela até seus atuais 76 anos.

Pelo marido mulherengo, fazia de tudo para não perdê-lo, se até preciso fosse (como quase sempre era) enxotar as raparigas intocadas em algum cabaré ou de uma casa estrategicamente locada pelo companheiro -, amante das noitadas quando se encontrava na cidade, vindos dos castanhais. Dizem que Lourdinha era o capeta em forma de gente, correndo atrás das putas do velho João.

São muitas passagens de uma vida singular de uma mulher que marcou época.

Lourdinha conta, até hoje, de peito tufado, que rapariga com ela, “era na bala…”, pra delírio dos filhos em rodadas dominicais esticando a corda da mãe, orgulhosa de ser o que sempre foi: destemida, independente e doce, apesar das doidices praticadas.

Lourdinha, foi uma das primeiras mulheres a romper os limites do espaço privado e a mostrar ao “público externo”que a mulher era mais do que uma prendada pessoa moldada a lavar roupa, varrer a casa e fazer comida. Com toda certeza, se a baixinha varreu a casa dela com o afinco de toda dona de casa, isso pode ser contado nos dedos. Ela não foi feita pra isso.

Nem pra ficar sentada na calçada esperando o marido chegar das funções vitais do dia a dia. Ou dos cabarés.

O trivial, ela deixava com a empregada, e pegava a estrada. Ou o igarapé, caminho de todos os nascentes nos tempos dos castanhais.

Lourdinha, no entanto, nunca refletiu sobre a importância de sua independência. Nem defendia, igual faz toda feminista, a mulher como ser capaz tanto quanto o homem de ocupar cargos de comando, como de general, almirante e ministro, ou de exercer a medicina, a magistratura e a advocacia, muito menos sabia o que era defender uma sociedade que valorizasse a função materna.

Agia por puro instinto de sobrevivência, ou impaciente por esperar outros a resolverem paradas que ela podia solucionar com as próprias pernas e mãos. Por isso, da maior importância, os gestos dela acendiam debates nas portas de casas e abalavam de certa forma as eternas verdades de elites patriarcais.

Pra baixinha, era papo sem sentido idéias de que a menina devia ser educada para ser melhor mãe de família. E foi nesse embate, no meio selvagem, que ela se agigantou entre seus entes, enfrentando a rígida estratificação social que privilegiava o masculino.

Sem preconceitos, costumava descarrilar todos aqueles que chegavam à sua porta com juízo de valor oposto, privilegiando sempre os negros como seus trabalhadores preferidos, “porque honravam compromissos e não mereciam ser enxotados da porta de brancos”, diz até hoje.

De coração imenso, jamais deixou alguém sem auxilio. Bastava chegar aos seus aposentos, que recebia a solidariedade dela. Até hoje, age com esse sentimento humano do tamanho do mundo.

Pois bem, essa mesma Baixinha teve seu lindo passado reconhecido pela Câmara de Marabá.

Na semana última, Lourdes Maria Gaby Bogéa foi condecorada com a comenda “Mirian Chaves”, outra extraordinária mulher marabaense, a primeira vereadora do município. Filhos dos filhos de pioneiros, hoje parlamentares, fizeram questão de consagrá-la em plenário, numa proposição do ex-prefeito e hoje vereador, Nagib Mutran Neto.

Da tribuna, ecoaram lembranças da história do município, os vereadores Miguelito Gomes, Vanda Américo, Júlia Rosa e o próprio Nagib, ressaltando belas páginas do passado escritas pela figura pequena e atrevida da Baixinha – mulher que nos trouxe ao mundo. E que tanto amamos.
Lourdinha, ao centro, recebe o carinho do marido João Bogés e do vereador Nagib Mutran, autor da homenagem .