Assinado por Ana Diniz, via blog do Paulo Bemerguy:
Ele é o legítimo representante de alguns milhões de brasileiros. Talvez nem dos que votaram nele, mas dos milhões de brasileiros semianalfabetos, ou, na linguagem politicamente correta atual, analfabetos funcionais.
Lembra-me o cacique Juruna, eleito pelo Rio de Janeiro politizado, para ser o primeiro índio no Congresso Nacional – seus representados eram os índios, que não votavam; então o Rio de Janeiro cedeu uma vaga para eles. Juruna andava com um gravador pendurado no pescoço para testemunhar suas audiências. Sua presença no Congresso – determinou uma alteração substancial na política indigenista. Principalmente porque os índios passaram a ser vistos pela população: aquelas imagens exóticas das revistas foram aos poucos substituídas pelas imagens dramáticas e contemporâneas. Ele conseguiu apoio suficiente no Congresso para trazer para as mesas de negociação a questão das terras indígenas.
Era um só índio, eleito por não-índios, cumpriu um só mandato e fez enorme diferença até ser politicamente devorado.
Se Tiririca vai fazer ou não diferença, não sei. Mas ele é um homem que batalha a vida, igual a milhões de outros espalhados pelo Brasil, que não votaram nele mas que vivem o drama das poucas letras.
Eu vi a cartilha que ele distribuiu, e gostei. Simples, fácil, pobre, direta e decente. Se essa vai ser sua marca, ótimo: o elitista Mercadante, que mandou tirar seu nome da propaganda dele, terá que enfrentá-lo.
Se o alcançasse, diria a Tiririca que marque o seu mandato em algumas coisas essenciais para esse povo de analfabetos funcionais: sinalização gráfica, por exemplo, nos transportes públicos (é terrível a dificuldade que um analfabeto desses tem para pegar um ônibus); prioridade para o combate ao analfabetismo, hoje chamado sofisticadamente de Programa EJA (Educação de Jovens e Adultos), relegado a segundo plano governo após governo; mídia de rádio em massa para prevenção de doenças; e muitas outras coisas pelas quais lutar. E mais: contrate um tradutor de vernáculo, ou seja, uma pessoa capaz de lhe explicar a complicada linguagem burocrática.
Como não o alcanço, limito-me a desejar-lhe sorte melhor que a do Juruna que, ao perder a eleição, perdeu também a tribo e ficou num desvão entre a floresta e a cidade, numa velhice miserável até morrer. É extremamente difícil o combate com armas desiguais, e nem sempre se tem a pontaria de um Davi, que derrubou Golias com uma pedrada (mas que teve que usar a espada do gigante para matá-lo, ou seja: teve que armar-se no padrão do outro). Não ler fluentemente, e escrever com dificuldade é como enfrentar espadachins com uma atiradeira na mão.
Por outro lado, espadachins podem ser detidos pela sabedoria, mesmo que esta use pedras. Os romanos aprenderam isso da forma mais dura e literal, na guerra contra Cartago, de onde o sábio Arquimedes lhes atirava pedras com tanta sabedoria que afundava as galeras antes que chegassem ao porto. Mas era Arquimedes, não era Tiririca: este terá que se ater com a sabedoria comum que, se nos deu Carolina Maria de Jesus (“Quarto de Despejo”) e Cartola, ainda não nos mostrou ninguém capaz de escalar as muralhas do sistema sem a escada do alfabeto.
Não estranhem, meus amigos, estas linhas. Eu não tenho vergonha de ter o Tiririca no Congresso: ele é um pedaço grande do Brasil. Tenho vergonha é da existência desse pedaço, de seu tamanho e da nossa incompetência em fazer com que renasça na leitura.