Conforme o poster previu em seu post de segunda-feira, mais cedo do que se esperava, começam a aparecer versões próximas à realidade, sobre a renúncia do Papa Bento XVI.

Jornais e portais de notícias publicam, hoje, editorial de um dos jornais mais importantes da Itália, contando detalhes de uma briga pelo poder, no Vaticano.

No portal UOL:

 

 

O dia seguinte ao anúncio da renúncia de Bento 16 evidenciou ainda mais o ambiente de guerra civil no Vaticano que boa parte dos especialistas aponta como a razão de fundo para a sua decisão, muito mais que o peso da idade.

O melhor resumo está no editorial de capa do sóbrio “Corriere della Sera”, assinado por ninguém menos que seu diretor, Ferruccio de Bortoli. Diz que o ato do papa “foi certamente encorajado pela insensibilidade de uma cúria que, em vez de confortá-lo e apoiá-lo, apareceu, por diversos de seus expoentes, mais empenhada em jogos de poder e lutas fratricidas”.

Reforça Massimo Franco, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres, autor do premiado “Era uma Vez um Vaticano”: a renúncia do papa seria, para ele, “o sintoma extremo, final, irrevogável, da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”.

Bento 16 é apontado como um dos culpados por essa crise de sistema de governo até por quem, como o vaticanista Luigi Accattoli, elogia aspectos de seu papado: “Bento 16 iniciou uma grande obra de limpeza em matéria de escândalos sexuais e de finanças vaticanas, mas não conseguiu restabelecer a boa ordem na Cúria” (o órgão administrativo da Santa Sé, que coordena e organiza o funcionamento da Igreja Católica).

A pergunta seguinte inescapável é esta: a renúncia será suficiente para pôr fim ao que Bortoli chamou de “lutas fratricidas” ou, ao contrário, servirá para acentuá-las de forma que o lado vencedor imponha seu preferido para ocupar o trono de Pedro?

Paolo Griseri se atreve a responder, em texto para “La Repubblica”, escolhendo a segunda hipótese: “O que esteve dividido durante o pontificado de Bento 16 permanecerá dividido no conclave e nos dias que o precederão”.

O mais paradoxal na guerra civil no Vaticano é que ela não se dá mais entre os chamados “progressistas” e os “conservadores”.

Estes venceram e reduziram o outro lado à impotência e/ou ao silêncio, para o que Joseph Ratzinger foi essencial, em seu longo período à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, antiga Inquisição.

Os contornos do novo conflito são mais embaçados, até porque a Igreja Católica está impregnada de uma cultura do segredo. Mas parece tratar-se de uma disputa entre o velho e o novo.

Um pouco nessa linha seguiu Juan Arias, o correspondente de “El País” no Brasil e que, em seu longo período no Vaticano, tornou-se um dos mais respeitados analistas da igreja no mundo.

Arias minimiza a importância da discussão sobre se seria melhor “um papa latino-americano, africano, asiático ou de novo europeu e, mais concretamente, italiano”.

Para ele, “importante é que o sucessor de Bento 16 seja capaz de entender que o mundo está mudando rapidamente e que de nada servirá à igreja continuar levantando muros para impedir que lhe cheguem os gritos de mudança que provêm de boa parte da própria cristandade”.

É curioso que Arias, um leigo progressista, coincida com o próprio papa, notório conservador, que, no texto em que anunciou a renúncia, atribuiu-a à falta de forças para “o mundo de hoje, sujeito a mudanças rápidas e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé”.

É razoável supor que o papa estivesse se referindo a temas como a necessária limpeza dos pecados que a igreja acobertou (os padres pedófilos), o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o celibato dos padres, o papel da mulher na vida da igreja.

Resta saber se um colégio cardinalício feito à imagem e semelhança de Ratzinger tem, entre seus membros, número suficiente de purpurados abertos ao mundo capazes de conduzir um dos seus ao trono de Pedro.

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A Igreja Católica tem sido profundamente questionada desde meados da década de 1990 quando começaram a proliferar as revelações de abusos sexuais cometidos por sacerdotes contra crianças e jovens em dioceses na Europa e nos Estados Unidos. E desde quando o jornal americano The New York Times divulgou reportagens relatando que, nos anos 90, o então cardeal Joseph Ratzinger, atual papa Bento XVI, deixou de apurar acusações de pedofilia e acobertou o sacerdote que as teria praticado, a crise atingiu o próprio coração da Igreja Católica – o papado.

É a crise mais grave vivida pela Igreja em muitas décadas.

A multiplicação dos escândalos comprometeram a credibilidade da Igreja.

A crise provocou debates, e alguns temas começam a aparecer.

Um deles é o celibato sacerdotal.

Um dos principais cardeais, o italiano Carlo Maria Martini, líder da ala progressista da Igreja, que foi candidato a papa na mesma eleição onde Bento 16 foi escolhido, atribui os casos de abusos sexuais cometidos por padres contra menores, à obrigatoriedade do celibato.

Outros, como o cardeal de Viena Christoph Schönborn, ou o reitor da PUC, dom Jseús Hortal Sánchez, dizem que o papa não apurou as denúncias em 1996, contra um padre americano que abusou de cerca de 200 crianças surdas pois teria sido impedido pelo então papa João Paulo 2º.

Pelo menos duas conclusões podem ser tiradas do escândalo que envolve a alta hierarquia católica.

Em primeiro lugar, a crise mostra que nem mesmo o papa – que é dotado do dom da “infalibilidade” atribuído por decisão dos próprios hierarcas católicos  –  está livre da vigilância social e, sendo um monarca absoluto em seu território, precisa prestar contas à opinião de seus fiéis. Este fato representa um progresso democrático que sinaliza a independência, mesmo dos crentes, em relação à hierarquia religiosa.

A outra conclusão diz respeito aos rumos da Igreja.

Desde o longo pontificado de João Paulo 2º, falecido em 2005, a Igreja Católica silenciou suas vozes progressistas e assumiu um rumo conservador e autocrático buscando legitimidade na fé e não no convencimento, alheia àquilo que encara como problemas mundanos.

Afastou-se das lutas progressistas dos povos, ficou à margem de temas importantes como os costumes, a liberação sexual, os avanços científicos, a participação da mulher nos ofícios religiosos.

Nestas e em outras questões trouxe a marca do conservadorismo mais retrógrado. A crise mostra que problemas expulsos pela porta voltam pela janela e forçam a hierarquia católica, mesmo que a contragosto, a dar as respostas que o mundo espera dela. Só que, no caso atual, movida por escândalos.

 

Lei mais sobre a disputa de poder,  no Vaticano.