Como é o seu “recomeçar”?

Cada ser tem uma fórmula “eficiente” para dar novos rumos à vida?

Ghyslaine Cunha, residente em Belém, tenta responder a essas perguntas, fazendo outra: – Esse desejo cíclico de re-começar revela quais interrupções e vazios em nós?

Ghyslaine nos leva a alguma reflexões ao produzir, especialmente para os leitores do blog, o texto que segue:

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Recomeçar

 

–  Ghyslaine Cunha

 

Persiste, nestes primeiros dias do ano, a sensação de recomeço, carregando, latente, uma esperança de que tudo seja diferente, novo e melhor.

Segundo o dicionário Aurélio, recomeçar é “… começar de novo; refazer depois de interrupção; (…) começar a ser, a produzir-se novamente…”

Esse sentimento coletivo, e sua urgência, manifestado inclusive nos desejos que expressamos e esperamos em datas festivas como o Natal, que simboliza o nascimento, e o Ano Novo, que simboliza o renascimento, podem revelar mais que os desejos de bons votos às pessoas queridas.

Todos temos, biologicamente, um começo e um fim: nascimento e morte do corpo físico demarcam nossa existência manifestada na matéria. Demarcam, mas não marcam. Nossa existência material nesta dimensão é permanentemente desafiada pelo anseio, quase desesperado, da transcendência. Desejamos romper os limites extremos do corpo, das regras, da morte, porque temos pistas de que somos além de tudo isso… E é então que começamos muitas buscas.

Nos primeiros anos da vida, nossas procuras são imediatas, guiadas por sensações que necessitamos saciar, sem pré-ocupações. É brincando que nos descobrimos, e ao mundo. Não por acaso, esse tempo, independente de quanto dure, será, para sempre, nosso solo interno de segurança porque é nele que estão os inequívocos sinais dessa possibilidade libertária de, despreocupados, sermos.

À medida que vamos “crescendo” todos os enquadramentos passam a ditar as regras de convivência e começamos a nos pré-ocupar com as cobranças sobre nossas adaptações. Recebemos, com ou sem crises e traumas, as balizas que, “normalmente”, dão conta do mundo externo, das nossas relações com os outros, com as aparências, com os fatos, sempre nos deslocando para fora do nosso eixo interno, para longe do nosso centro profundo. As regras de convivência não são caminhos de vivência interior. Sobre isso, desaprendemos enquanto somos “educados”. As regras são imposições sociais alheias ao nosso ser interno. São moldes.

Não me interessam, aqui, julgamentos. Quaisquer tentativas nesse sentido, não escapariam a uma armadilha maniqueísta.

Muitos podem argumentar que em nossa sociedade de contratos, as regras são fundamentais. Pois bem, criamos as mazelas e depois criamos as regras para limitar e contornar as mazelas das mazelas, enfim… Tampouco estou movida por uma curiosidade do tipo: e se fosse diferente… Pouco importa.

O que gosto é de tocar em um ponto profundo, interno, oculto: esse desejo cíclico de re-começar revela quais interrupções e vazios em nós?

Somos parte da natureza, embora nos desloquemos “acima” dela, em uma atitude arrogante, egocêntrica, enquanto espécie que se julga superior às demais. Aliás, aprendemos, nas escolas, que o homem evoluiu quando dominou a natureza e a transformou para sua sobrevivência e proveito. Foi exatamente aí que o homem se separou, deu-se a queda. O conhecimento usado para dominar, também aprisiona e isso está no centro de toda a relação do ser humano com a vida que julga estar “ao redor”, a que chamamos natureza.

Essa natureza tem seus ciclos nos quais o ser humano, como parte, está inserido. Tudo o que é vivo, em todos os reinos, está contido no processo de nascimento e morte da matéria. Tudo cumpre seu papel de criar e transmutar, usando os fluídos vitais para isso. Ao mesmo tempo, tudo convive regulando as disputas por recursos para a sobrevivência, enquanto tiver que durar. As raízes das árvores, por exemplo, disputam espaço no subsolo buscando os caminhos da água; e as folhas e flores, no ar, buscando os caminhos da luz. A cadeia alimentar ordena a sobrevivência no reino animal, de modo que no topo estão os carnívoros; não o ser humano, como desaprendemos na escola. O ser humano não é carnívoro e não está no topo. Há muita informação e estudos científicos sobre isso, mas ressalto que os carnívoros consomem a carne ainda quente recém abatida e crua, com o sangue ainda oxigenado. Quem come carne “passada”, carniça, portanto, são os abutres.

A natureza funciona naturalmente. O que costumamos chamar evolução foi a separação contínua e crescente do ser humano dos processos naturais. Criamos as doenças nos laboratórios, modificando os alimentos, e depois criamos, nos mesmos laboratórios, os remédios, também modificando os elementos da natureza. Por exemplo, dezenas de novas doenças passaram a existir entre os humanos com a introdução do açúcar quimicamente embranquecido na dieta alimentar*.

Retomo, agora, o ponto sobre nosso desejo da transcendência, no centro da busca por renascer. Não creio que nossa “evolução” enquanto separação tenha significado transcendência. Transcende quem, por dentro da espécie, rompe internamente seus limites inerentes. Transcendeu a leoa africana Little Tyke que nunca se alimentou de animais e viveu saudável, com sua dieta de cereais, grãos cozidos, ovos e leite. Há fotos famosas da leoa convivendo amorosamente com carneiros e outros animais na fazenda em que vivia.

Transcender é renunciar àquilo que separa, que parte o Todo. Transcender é movimentar-se amorosamente em direção ao Todo, à Unidade da Vida manifestada, aqui na terra, à natureza. Transcender, para o ser humano, no atual estágio da humanidade, seria abdicar da ilusão do poder que exerce de dominação da natureza. Transcender seria amar a natureza, amar a seus ciclos que também são os nossos, amar a todos os reinos. Amar significa se submeter, respeitar, preservar, cuidar, renunciar. Não precisamos dominar a natureza ou alimentar a ilusão de dominação da natureza. Somos parte dela. A natureza é o todo.

Sinto que ao nos relacionarmos destrutivamente com a natureza, sendo, intrinsecamente, parte dela, escolhendo caminhos de dominação e chamando a isso evolução, pagamos um preço muito alto, um preço além dos fatores externos, os desequilíbrios, ou os reequilíbrios, ambientais como os maremotos, secas, tsunamis e outros. Nosso preço mais caro é o desequilíbrio interno, que abre fendas profundas, vazios, interrupções em nós. A humanidade separada age como o raio de sol que esqueceu que é parte do sol e busca ser luz**.

O que queremos, então, recomeçar? Em que patamares queremos recomeçar? Será, realmente, nosso desejo de recomeçar um desejo profundo, legítimo, disposto a transcender nossos limites e renunciar ao que nos têm separado? Ou será que nosso recomeço é apenas uma repetição, um mais do mesmo, sem nada de novo, diferente ou melhor?

 

 

– Ghyslaine Cunha (como ela mesmo se apresenta) é mãe de Cecília, eterna estudante das ciências sociais e políticas, vegetariana e esotérica, apaixonada por poesia, crônica e boa música, editora do blog http://amoresmeusvidaminha.zip.net . Também presta assessoria política e em planejamento e gestão a associações e sindicatos de trabalhadores, pequenas empresas, mandatos e outras organizações populares.

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*Indispensável a leitura do livro “Sugar Blues: o Gosto Amargo do Açúcar”, de autoria deWilliam Dufty.

** trago a imagem criada por Eckhart Tolle em seu maravilhoso “O Poder do Agora”.