Helenilson Cunha Pontes, Doutor, Livre-Docente pela USP e advogado tributarista, envia ao blog artigo assinado por ele sobre a Reforma Tributária:

 

Um outro ICMS

A Câmara dos Deputados ameaça colocar em votação a proposta de Emenda Constitucional enviada pelo Governo e que pretende ser a tão falada e esperada “reforma tributária”.

A proposta é extensa, trata dos assuntos mais diversos. No entanto, há um tema que merece a atenção do cidadão comum, sobretudo aquele que vive nos Estados periféricos desta Nação, marcada pela desigualdade social e econômica entre as diferentes regiões. Refiro-me à tentativa do Governo Federal de retirar a autonomia dos Estados de fazerem política fiscal com o ICMS, a principal fonte de financiamento dos orçamentos estaduais.

A disciplina do ICMS contempla duas questões centrais: o tratamento tributário das operações internas, nas quais o comprador e o vendedor estão dentro do mesmo Estado; e as operações interestaduais, onde estas partes estão situadas em Estados diferentes.

Como o tributo é não-cumulativo, ou seja, o pagamento do ICMS pelo vendedor pode ser compensado pelo comprador, se este estiver em outro Estado, ocorre, na prática, uma transferência de renda de um Estado (aquele que recebeu o imposto) para outro (aquele onde está o comprador e contra o qual ele utiliza o crédito pago pelo vendedor). Esta é a razão pela qual o maior problema do ICMS está na disciplina das operações interestaduais.

Em linhas gerais, o país pode ser dividido entre Estados produtores ou vendedores de mercadorias (notadamente os Estados industrializados do centro-sul) e os Estados consumidores ou compradores (Estados do norte, nordeste e centro-oeste). Pela lógica do ICMS, os Estados vendedores ficam com o ICMS incidente sobre a venda do produto industrializado e os Estados compradores têm que assumir o desconto deste crédito quando o mesmo é utilizado pela pessoa, domiciliada em seu território, que comprou e revendeu o mesmo bem.

No que tange às operações interestaduais, o projeto de reforma caminha no sentido da transferência da incidência do ICMS para o Estado de destino, ou seja, o imposto, paulatinamente, passaria a ficar com o Estado onde ocorre o consumo dos bens e serviços. Esta medida tende a ser positiva para os Estados menos industrializados.

No entanto, quando trata das operações internas, o projeto de reforma tributária praticamente aniquila com a possibilidade de os Estados consumidores utilizarem a política tributária, onde o ICMS é o maior instrumento, para atraírem investimentos e criação de novos empregos.

Com efeito, a reforma tributária que se pretende aprovar impede os Estados de concederem incentivos fiscais na área do ICMS, ao estabelecer, no plano federal (e não mais no estadual), regras únicas para o imposto, inclusive suas alíquotas. Os incentivos de ICMS foram o principal fator de atração de investimentos industriais nos últimos anos em Estados como Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Ceará, Pará e outros. Não fosse a teimosia destes Estados de, afirmando a sua autonomia, afrontarem a absurda regra que exige o beneplácito do Confaz para a concessão de incentivos fiscais de ICMS, o que exige a unanimidade dos participantes deste Conselho, as inúmeras fábricas hoje situadas nestes Estados estariam em São Paulo ou talvez sequer existissem.

Se os representantes políticos dos Estados periféricos fizerem uma pequena reflexão e pensarem no futuro dos seus Estados, e não apenas no presente, verão que a proibição de incentivos fiscais estaduais representa uma inaceitável renúncia da sua autonomia, algo que é incompatível inclusive com o regime federativo, sistema que pressupõe a liberdade para as partes individualmente consideradas (Estados e Municípios) possuírem um campo de liberdade normativa próprio e exclusivo, livre da interferência do todo (União).

A concentração em poder da União da competência para conceder incentivos fiscais de ICMS, além de um tiro certeiro no peito do já combalido federalismo brasileiro, será também um equívoco equivalente à desoneração, ampla e irrestrita das exportações, sem considerar a origem e o grau de industrialização do produto exportado, promovida pela Lei Kandir. Em troca da desoneração (desjeada pelo poder central), os Estados exportadores aceitaram receber o fundo de compensação, que a história demonstrou posteriormente ter sido um péssimo negócio para eles.

O mesmo pode ocorrer com o projeto de reforma tributária em discussão, através do qual a União não pretende reformar o ICMS, mas criar um outro ICMS, no qual o poder de decisão esteja não mais com os Estados, como exige o regime federativo, mas com ela própria, União.