Naquela noite Manu não teve sono. Teve uma ideia. Uma ideia muito maluca.

A razão da pequena Manu, personagem do livro da escritora infantil Cecilia Vasconcelos, não ter dormido chamava-se Cadu, seu irmãozinho mais novo; o bebê que encantava a todos da casa.

Papai chegava do trabalho e agarrava o Cadu, virava-o de cabeça pra baixo, mamãe na hora da comida virava uma boba dialogando com o bebê: Tira a pepeta, nenê. Viu como o Cadu papa ninito? Vovó levava o Cadu para passear na rua.

E a Manu?

Ficava lá, sozinha, assistindo tevê, largada no sofá. Observando todo o movimento da casa em torno do irmão.

A ideia maluca que não a deixou dormir foi colocada em prática bem cedinho no outro dia. Enquanto a família tomava o café, Manu enfiou o dedo na domada de energia, deu um grito e caiu dura!

Foi um corre, corre… Todos perceberam a existência da menina, foi pegada no colo, chamaram até um médico.

Como médicos são peritos em dar diagnósticos, o desta história foi certeiro. Examinou e passou a receita:

Receita Médica

A menina Manu merece

Colo, beijo e cafuné

Senão ela adoece

E aí…

Só coçada no pé.

Dr. Sabe-Tudo”

 

A receita do médico é uma aula de cuidados.

O livro citado me acompanha há alguns anos. Já o li para meus filhos, alguns alunos e para mim mesma uma centena de vezes.

Na última semana voltei a lê-lo para me lembrar de como uma criança (e nós adultos também) precisa ser tratada: com colo, beijo e cafuné. Pois um acontecimento paralisou toda a escola. O menino Edgar foi afrontando por um colega, e uma briga formou-se na sala de aula às 7:00 horas da manhã. Foram separados, porém Edgar não se conteve: pegou um bloco enorme de cimento e lançou contra o outro.

Isso mesmo! Arremessou contra o colega! A tragédia só não se processou porque a professora, com uma atitude heroica, se interpôs entre o bloco de cimento e o menino, segurando o objeto. Ação que lhe causou alguns hematomas.

Após o episodio e o Edgar acalmado por professoras; ficamos analisando todo o contexto. A professora do aluno rebelde sentia-se só e despreparada para lidar com a situação. Naquele dia toda a equipe da escola sentiu-se despreparada.

Edgar sempre estudou na escola, possui um histórico de rebeldia e desapego, nos diálogos com as professoras demostrava sua mágoa com a ausência da mãe, afirmando que não gostava de mães. Também não compartilhava seus sonhos, ao ser perguntado o que faria com uma bola, declarou seco: Não gosto de bola!

No outro dia o pai solteiro, um senhor com mais de 70 anos, ao ficar sabendo do que havia acontecido, compareceu à escola. Com voz cansada e baixa, foi narrando a triste história de vida do filho: após um caso com uma mulher, nasceu o Edgar, a mãe o largou na mesa de sinuca de um bar, já tinha outros filhos e não queria mais aquele.

Preocupei-me com o fato do pai repetir a história para o próprio Edgar. Sempre gostei da sinceridade, dialogar sobre tudo me causa tranquilidade e equilíbrio para prosseguir. Porém ouvir centenas de vezes algo perturbador não me pareceu uma terapia proveitosa.

O menino Edgar foi carinhosamente acolhido pela professora. Passou-se a dar-lhe uma atenção individual e diferenciada. Em poucos dias, na sala dos professores, vi uma professora triunfante entrar na sala declarando:

-Gente, hoje o Edgar me falou qual é o sonho dele: comprar um carro, preto e com quatro portas. Aí busquei umas revistas e fomos escolher o carro que ele comprará!

Me emocionei com a vitória da professora. Faltava afetividade ao menino, faltava acolhida, atenção, diálogo. Ao arremessar o bloco de cimento Edgar gritou por socorro. Precisava ser percebido, ser ouvido, desabafar a dor do abandono, a dor da solidão, a dor da ausência.

Adultos muitas vezes sentem vontade de arremessar pedras em vidraças para serem percebidos também. Eu mesma, muitas vezes, quis quebrar vidraças, para ver se quem está lá dentro saia e me percebesse. Acontece que as crianças agem muito mais que nós adultos. Mesmo porque não é nada civilizado sair por aí quebrando vidraças.

Mas que dá vontade dá!!!

A emotividade é algo inato ao ser humano, somos primeiro uma geleia de emoções, boas e ruins, e com o nosso desenvolvimento vai se diferenciando em vida racional. Bebês choram, tocam, olham, são seres afetivos ao extremo. A afetividade torna-se um instrumento de sobrevivência. Quem poderá agredir um bebê de olhos pidões? Quem consegue ignorar um choro desesperador? Quem não se derrete com um beijo babado de um bebê (sempre me sinto abençoada por Deus quando um bebê me toca)?

Infelizmente existem pessoas que são capazes de ignorar todos esses momentos de um bebê. Talvez por não terem vivenciado uma vida de carinho, atenção, acolhida. Terminam por disseminar em seus filhos a ausência da afetividade.

E este foi o caso do nosso pequeno Edgar. A mãe, sem estrutura emocional e financeira para cria-lo, o entregou a um pai idoso, frágil, que necessita dos mesmos cuidados que o filho. A sinceridade infantil do pai de Edgar nos chocou por percebermos a nossa responsabilidade enquanto escola de proporcionar ao aluno vivencias afetivas, estruturas emocionais que falta em sua vida familiar.

Nossos olhos se voltaram para o menino que gritou através de um bloco de concreto. Mas quantos meninos e meninas ainda silenciam em seus tormentos e carências? Não gritam suas angústias, por medo, por não saberem a forma de gritar, de chamar a atenção, de dizer que estão sofrendo.

Edgar e a menina Manu do livro de Cecilia são reais. Frequentam as nossas escolas, sentam nas carteiras das nossas salas de aulas e, tristemente, não gritam:

– Preciso de ajuda!

(*) Evilângela Lima Alcântara, Educadora, Diretora da Escola de Ensino Fundamental São José