Essa história de grandeza e visão de estadista é contada pela jornalista Sylvia Colombo, que foi ao Uruguai entrevistar o presidente José “Pepe” Mujica, em final de mandato.
Leiam atentamente para o que nos ensina o singelo presidente, uma das reservas morais deste mundo tão conturbado.
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Se continuarem respondendo ao narcotráfico pela via da repressão, os governos latino-americanos estarão cultivando “uma esplêndida derrota”.
É a opinião do presidente uruguaio José “Pepe” Mujica, 79, que, entre outras leis de cunho liberal, aprovou durante sua gestão a regulação da produção e do consumo da maconha. “Se você quer mudar uma situação, não pode seguir fazendo a mesma coisa, tem que buscar outro caminho. Eu não sei porque o mundo não vê o que está acontecendo.”
O partido de Mujica, a esquerdista Frente Ampla, é o favorito para vencer as eleições do próximo domingo no Uruguai, reconduzindo ao cargo o antecessor do presidente, o também líder socialista Tabaré Vázquez. As pesquisas apontam uma vitória do médico oncologista por 52% a 42%. O segundo colocado é Luis Lacalle Pou, do partido Nacional.
Mujica, que deixará o cargo em março, recebeu a Folha em seu sítio, em Rincón del Cerro, nos arredores de Montevidéu. “Balanço de governo? Não sou dono de armazém, não faço balanços, é preciso olhar para a frente”, disse, bem humorado, no banco do jardim da modesta casa em que vive com a mulher e os cães.
Leia, abaixo, os principais trechos da conversa.
Como avalia a implementação da lei da maconha no Uruguai?
José “Pepe” Mujica – Nós não gostamos da maconha nem de nenhum vício. Mas pior que a maconha é o narcotráfico. O que está acontecendo é que, pela via repressiva, o narcotráfico está se matando de rir. Cada vez se trafica mais, se gasta mais dinheiro em polícia, em colocar gente nas prisões. Estamos cultivando uma esplêndida derrota.
Todos os governos da América Latina, desde esse ponto de vista, parecemos estados falidos. Cada vez armamos aparatos maiores para reprimir, cada vez temos mais gente presa, e cada vez há mais tráfico de drogas!
Nós queremos achar um outro caminho. Se você quer mudar, não pode seguir fazendo a mesma coisa, tem que buscar outra maneira. Eu não sei porque o mundo não vê o que está acontecendo, parece que colocamos uma venda sobre os olhos, como se a droga fosse uma coisa feia que não se pode mencionar.
Mas, e o cigarro, é bom? Por que não proibimos o cigarro? Porque não podemos, se fizermos isso, o mercado clandestino vai ser atroz. Essas coisas precisam ser discutidas de modo mais sério.
[O pintor espanhol Francisco ]Goya [1746-1828] disse que pintava seus monstros sob efeito da droga. Claro, não quero dizer que se tomarmos droga vamos pintar como Goya [risos], mas quero dizer que há muito que isso existe.
A legalização parcial nos permite identificar os consumidores e assim aconselhá-los e tratá-los. Aqui, nós temos um problema de dose. Se eu tomo uns três copos de uísque por dia, talvez não me faça bem, mas é suportável. Se eu tomo um litro, vão ter de me internar. É isso que queremos identificar. Hoje, como está tudo no mundo clandestino, quando identificamos o problema, é tarde demais.
O sr. também considera positivo o saldo da legalização do aborto? Por que é um tema tão difícil de ser discutido em tantos países?
Existe uma tradição política no Uruguai de colocarmos os problemas sérios sobre a mesa, e não escondê-los. Aqui neste país, em 1914/15 [gestão do colorado Battle y Ordóñez], o Estado reconheceu a prostituição e fundou uma universidade feminina para que as famílias conservadoras se animassem a mandar suas filhas estudarem, entre outras coisas. Naquela época, se pensava que a sociedade ia dissolver-se se as mulheres fossem estudar. O Estado também nacionalizou o álcool, e durante 50 anos era o único a produzir aguardente.
Assim estamos encarando esse tema. Ninguém está a favor do aborto, mas por muitas razões as mulheres, sozinhas, ou com problemas, continuam realizando-o. Se as deixamos sozinhas, isoladas, é uma covardia, uma irresponsabilidade. Muito mais se ela é pobre.
Nós oferecemos o serviço, mas a primeira ação é tratar de dissuadi-la e de oferecer apoio. Assim salvamos mais vidas. Se as mulheres persistem em sua decisão, nós o realizamos, e assim lidamos melhor com os problemas que ocorrem se o aborto se faz de modo incorreto. Ou seja, há um custo humano menor.
Isso quer dizer que essa política dá resultado desde o ponto de vista do princípio da defesa da vida, exatamente ao contrário do que dizem os opositores. Quando deixamos o assunto do aborto no mundo clandestino, a única coisa que estamos fazendo é colocar em maior risco as mulheres. A deixamos sozinha. E isso é uma covardia, uma irresponsabilidade. Sobretudo nas famílias pobres. Creio que acontece por preconceito religioso. Mas o Uruguai é o país mais laico da América Latina.
O que funcionou e o que não funcionou, nesses dez anos de Frente Ampla?
Bom, as pessoas continuam tendo o péssimo vício de morrer, e não podemos consertar isso (risos). Mas, agora falando sério, o mais importante é que tínhamos 39% de pobreza há dez anos, e agora temos 11%. Tínhamos 5% de indigência, agora temos 0.5%.
Fizemos um avanço considerável nesse ponto, mas não foi o suficiente para eliminar a pobreza e a indigência num pequeno país rico em recursos naturais e que não tem justificativa de ser tão pobre nem indigente. Não chegamos aonde deveríamos ter chegado.
Também demos resposta parcial a problemas importantes do porvenir. Desde o ponto de vista energético, o Uruguai terá, em dez ou 15 anos, solucionado problemas de energia elétrica. Vamos ter em excesso para vender aos vizinhos. Por outro lado, estamos atrasados em infraestrutura, porque a economia, o transporte e o movimento portuário cresceram muito e não fizemos investimento a altura que facilite o fluxo de mercadorias. Estamos atrasados nisso.
Como foi a conversa com Dilma, há duas semanas, em Brasília?
Nossa relação com o Brasil é muito boa, sobretudo com governo federal. Às vezes aparece algum obstáculo com um Estado, sempre acudimos ao governo federal.
Algum Estado específico?
Depende das estações [risos]. Mas o governo federal sempre nos ajuda. Nossa preocupação é o que vai acontecer, quais são as perspectivas da discussão que temos com a Europa com relação a tratados de comércio.
Me preocupam os anúncios de acordos que os países do Pacífico estão fazendo na Ásia. Desde que falei com Dilma, China acertou um acordo importante com certos países da região eagora temos que nos posicionar frente a isso.
Minha preocupação é que aqui há um jogo de grandes potências que não podemos ignorar. Brasil, Argentina, Paraguai, Bolívia, nós temos um comprador cada vez mais forte que é a China. Se qualquer acordo que se faça desde essa costa do Pacífico ameace isolar a China, para nós será um problema difícil de resolver. Porque, sinceramente, não creio que os EUA vão comprar soja do Brasil nem de nós, por exemplo. Já não podemos renunciar à China, e por outro lado precisamos aumentar nossas relações de mercado. Temos um problema.
As medidas protecionistas de Brasil e Argentina prejudicam o Mercosul?
O Brasil sempre nos dá um lugar. A Argentina é mais esquemática. O Brasil é protecionista com o resto do mundo, mas não tanto conosco, com os integrantes do Mercosul. Já a Argentina é protecionista para todos. Por outro lado, a Argentina está passando por uma conjuntura econômica difícil.
E eu não concordo com essa análise apocalíptica de que a Argentina vai se derrubar. Eu fiquei velho ouvindo essa análise e a Argentina segue. No mundo, é preciso ter duas economias. Uma para o resto do mundo. E outra para a Argentina. É um país muito rico, de repente arranca. Sempre foi assim.
O baixo crescimento de Brasil e Argentina neste ano preocupam o Uruguai?
Preocupam, mas nós estamos com margem de flexibilidade para respirar. Por exemplo, nós procuramos ter um acordo especial em um setor, o de lácteos, com a Chinao. É um setor chave de nossa economia e precisamos da compreensão dos vizinhos grandes, para que ajustemos uma esquininha da nossa economia. Não vamos prejudicar o Mercosul.
O que explica a longevidade de projetos políticos como a Frente Ampla, o PT (Brasil), a Alianza País (Equador), o MAS (Bolívia)?
Significa que as maiorias estão comendo melhor e dormindo melhor. Por isso votam neles. É uma resposta muito lógica. E o que mudará no dia em que nós, forças progressistas, dermos as costas a nossa razão de ser, a lutar por sociedades mais equilibradas, o dia em que fracassemos nisso, a história vai mudar, e as pessoas vão votar em outra coisa.
O que o sr. acha da reeleição?
Não gosto e sempre me opus. Não pelo presidente, mas sim pela corte a seu redor. Não sou reeleicionista porque os presidentes emanam uma atmosfera de poder. E abaixo dessa atmosfera se cultiva um afã de poder e de estabilidade das pessoas que compõem o governo. É bom varrer, passar a vassoura colocar outros.
O sr. é um defensor dos partidos.
Sim, o partido é algo muito mais coletivo, por isso não simpatizo com os “outsiders” da política. Os partidos têm muitos defeitos, mas por enquanto é a melhor ferramenta que temos para decidir a marcha de um país.
Sempre terão a vantagem de ser um coletivo. O presidente pesa muito, claro.
Mas se tem atrás um partido, tem um elemento de sobrepeso, de controle.
Creio que qualquer construção política precisa de mais prazo, tempo e vai além da vida ativa que pode ter uma pessoa, um personagem forte. Os personagens passam, as causas ficam. Por isso, me parece mais lógico que tenhamos um partido que nos suceda e não nomes próprios que nos sucedam.
Essa é a razão pela qual surgiram as repúblicas. As repúblicas foram um grito negando a monarquia e o direito de sangue feudal, e vieram ao mundo para proclamar que homens e mulheres somos basicamente iguais. Portanto, quando escolhemos um presidente, escolhemos um administrador, não um rei, não um monarca.
É bom que exista uma força coletiva que o respalde, mas que também que o contenha.
O que o sr. acha do fato de sua vida humilde ter ganhado tanta projeção internacional?
Me entristece. Porque nas repúblicas, em última instância, as decisões fundamentais são da maioria. E portanto, os governantes devemos responder às maiorias, não às minorias.
Se minha forma de vida for a forma de vida dos círculos economicamente privilegiados de meu país, não tenha dúvida de que minha forma de viver não estou de acordo com a forma de viver da maioria do meu país.
Eu vivo como vive a imensa maioria do povo uruguaio. Eu não tenho a culpa se outros governantes, sem dar-se conta parece, mudam de quadro. Eu não mudei de quadro, pertenço a uma determinada classe social, represento essa classe social, tenho seus valores.
Por outro lado, pessoalmente, luto pela liberdade. E o que isso significa do ponto de vista pessoal? Ter tempo. Ter tempo para as coisas de que gosto. Se tenho uma vida muito complicada, muitas casas, muitos empregados, muitos carros, muito chofer, muita segurança, então vivo gastando tempo para atender a todas essas coisas. E eu quero uma vida sóbria, não pobre, com o imprescindível e necessário para que me sobre tempo para fazer as coisas de que gosto. Sou presidente porque sou um lutador social. Amanhã não serei presidente, mas enquanto os ossos me respondam, vou seguir lutando, assim até o caixão, não me aposento.
Como tenho minha vida comprometida, preciso do maior tempo da minha vida dedicado a isso. Isso pode surpreender, mas não é improvisado. É largamente pensado. Tenho um discurso de mais de 30 anos, de quando saí da cadeia, em que mais ou menos disse essas coisas que te estou dizendo agora.
O sr. vê no que faz hoje uma continuidade com sua atuação como guerrilheiro?
Em termos de objetivos, sim. De lutar para tentar conformar uma sociedade mais justa. Quando eramos mais jovens, eramos mais ingênuos. Pensávamos que podíamos mudar o mundo. Na medida em que fomos envelhecendo, o objetivo de justiça e equidade segue sendo o mesmo, mas nos damos conta de que o caminho é muito mais longo e mais difícil.
Não podemos mudar o mundo, mas sim melhorar um pouquinho o bairro onde vivemos. Depois virão outros, e outros e outros.
O sr. se arrepende da opção pela luta armada?
Cada coisa tem seu tempo. A América era outra América, o mundo era outro mundo. E éramos funcionais à época em que vivíamos. Hoje sou um pacifista extremo. Porque antes podíamos pensar que havia guerras justas e injustas. Hoje, quando contemplamos os fatos, sabemos que todas as guerras são injustas, porque os que pagam o maior preço, sem ter nada que ver com a guerra, são os mais humildes.
Em todas as partes da Terra é preciso lutar para diminuir os conflitos. Ainda que isso suponha andar muito mais devagar.
No Brasil, estamos a vésperas da entrega do relatório da Comissão da Verdade. Como o sr. vê a diferença com que Brasil, Argentina e Uruguai encaram o assunto? A Argentina está julgando amplamente, o Uruguai julgou parte, no Brasil, é difícil que caia a Lei de Anistia.
A ditadura argentina teve um grau de violência e de abusos que deixou provas contundentes por todos os lados. a ditadura uruguaia não escreveu tantos papéis. É um país mais pequeno e os que têm as fontes da verdade as guardam. E não podemos torturá-los. Na Argentina, teriam guardado, mas como cometeram muitos abusos, há provas por todos os lados. Nós condenamos àqueles sobre quem tínhamos provas. E não podemos condenar a quem não temos prova, também não podemos torturar. Nem inventar evidências.
Somos prisioneiros de nossa própria tradição institucional, essa é a diferença. O Brasil teve seu processo, acho que cada sociedade faz o que pode. Admiro o que fez a África do Sul. Tomara que a Colômbia possa beber dessa fonte. Porque ter 50 anos de conflito armado e depois colocar-se a fazer Justiça aí, pode não acabar nunca. Foi muito inteligente o que fez a África do Sul, a confissão social dos que tinham alguma responsabilidade eximia de culpa jurídica, mas se assumia a culpa social. É de uma maturidade notável para uma sociedade.
Mas nós seguimos investigando, buscando desaparecidos, analisando DNA, e de vez em quando encontramos algo.
O sr. pensa naqueles que o torturaram?
Não, eu não cultivo isso. Não me dedico a viver escravizado, nem pela Justiça nem pelo ódio, porque minha vida segue adiante, mas reconheço que sou bastante excepcional, sou um lutador social e um lutador político.
Aqueles que me torturaram e me detiveram encarcerado, se não fossem eles, teriam sido outros. Eles estavam cumprindo uma função de poder reaciónario nesse momento. Não posso me agarrar a isso até a morte. E não posso tentar ganhar a um torturador. Tento ganhar a família, os filhos, todo o mundo que o rodeia.
Se apareço com uma cara vingadora, para ajustar velhas contas, não vou estar em condições de ganhar politicamente o que vem adiante. Em minha luta política adoto a tática mais conveniente para avançar no porvenir.
Mas reconheço que tem gente que não vê essas coisas politicamente e pensam de uma forma diferente. Aspiro para que, no futuro, existam oficiais e soldados das Forças Armadas que pertencem às minhas filas, para que pensem parecido a como eu penso. E trabalho para isso no longo prazo.
Mas isso não significa que eu me esqueça do que aconteceu comigo. Há coisas que não podemos esquecer, mas temos que carregar na mochila e aprender a andar com elas.
George Hamilton Maranhão Alves
27 de novembro de 2014 - 12:07O combate ao tráfico de drogas envolve o custo financeiro: dinheiro para aparelhamento das polícias e para criação de espaços prisionais. Envolve o custo da corrupção, pois é comum ouvirmos que uma parte da polícia, que deveria combater o tráfico, extorqui dinheiro dos traficantes, nas “bocas de fumo”, realimentando o sistema. Esse lado da corrupção é grave, pois torna o tráfico uma coisa infindável.
O tráfico de drogas em si, envolve o custo dos homicídios, tanto decorrentes do confronto entre polícia e traficantes quanto entre os próprios traficantes, por briga de domínioss de atuação. Envolve também o custo de jovens recrutados para o tráfico, geralmente sem volta, alimentando o sistema da criminalidade. Envolve também, a criminalização do usuário, pois alguns usuários passam a contribuir com o tráfico, a fim de satisfazer o seu vício.
O tráfico de drogas também se relaciona com outros crimes, como por exemplo, o assalto a bancos, a fim de levantar capital para a compra da droga que será traficada. Ou seja, o crime se organiza e se amplia.
Um outro custo é a soberba de trabalho para um judiciário já saturado de processos.
Então, pergunto: O custo da repressão às drogas é menor do que a tomada das rédeas, por parte do Estado, na produção e distribuição das drogas? Ou seja, a liberação gradual é mais cara do que a repressão? Temos que fazer as contas. Concordo com o presidente uruguaio e, na minha opinião, estamos enxugando gelo. E temos que tirar o caráter falso moralista das drogas!
Hoje, no modo de dizer, em qualquer balada de jovens e bacanas, tem a tal da “xeiração de pó”.