Não gosto, mas vou escrever na primeira pessoa do singular.

Jovem ainda, eu tinha restrições de me entregar totalmente ao amor. Sobretudo, vergonha de parecer romântico. O medo da entrega transformava gestos e declarações em atos vulneráveis. Pior, qualquer relação virava louca paixão e, com ela, o lado romântico enchendo-me de sensação de ridículo.

Como muitos colegas da mesma idade demonstravam o seu romantismo por opção natural, desgraçadamente eu não conseguia nem se dar conta disso. Resistia sempre a não permitir a exteriorização do que considerava ser um sentimento envergonhado.

O assunto surge no vácuo do trabalho escolar de uma turma do Ensino Fundamental formada por cinco colegiais adolescentes que me submeteram a demorada argüição, perguntando sobre “Romantismo Como Fonte de Energia do Amor”. Em verdade, um singular tema – em relação aos que normalmente são aplicados – encomendado pela professora de Português para avaliação semestral dos jovens.

De repente, diante da garotada, a responsabilidade de esmiuçar assuntos de tamanha complexidade sem enveredar pela perigosa trilha do simplismo fantasioso.

Antes de adentrar ao que interessava a eles, provoquei-os querendo saber o que lêem. Tinha certeza de que as respostas não causariam nenhuma surpresa diante da constatação antiga de que as novas gerações demonstram raríssimo entusiasmo por algum livro. Principalmente a chamada aldeia digital nativa, ou seja, aqueles jovens que cresceram teclando na Internet.

Paradoxalmente ferramenta de poder imensurável por oferecer infindáveis opções de conteúdo -, a Internet não é usada nesse sentido pela maioria da jovem população brasileira. Ao contrário, atua fermentando o interesse quase que exclusivamente por linkar chats e canais de relacionamento que mais alienam do que ajudam na construção de uma base cultural.

Antes, esclareço: particularmente, considero a Internet uma das maiores invenções da humanidade – logicamente depois da escrita. Só que não está havendo por parte dos pais orientação sadia quanto ao uso da Rede pela família.

Voltando ao encontro com os estudantes, na minha sala de trabalho, em Marabá. Sem perceberem, liguei o gravador do celular. Como o papo prometia, era preciso registrar tudo.

Uma curiosa menina de 16 anos, a mais esperta do grupo, revela traços de liderança ao monopolizar perguntas. Quer saber se “uma alma irrequieta insinua felicidade ou se a mesma corre o risco de viver apenas experimentando desamor”. E surpreende mais ainda ao revelar que leu “Cem Anos de Solidão” e “O Jogo da Amarelinha”, contando detalhes das obras de Garcia Márquez e Júlio Cortazar, como a fundação de Macondo e a trajetória dos Buendía

A revelação de Keiliany me deixa de olhos arregalados com misto de surpresa e agradável admiração. Jamais imaginaria encontrar alguém tão nova falando de dois extraordinários escritores latino-americanos.

O que você mais gostou no “ Jogo da Amarelinha”?

– Quando vi na orelha do livro que se pode lê-lo de duas formas, fiquei curiosa, não sabia como seria aquilo, ler a narrativa de dois jeitos. A linear, que termina no capítulo 56; e a que vai sendo construída saltando-se de um capítulo a outro, e a gente vai encaixando as peças como num jogo. Gostei tanto disso que estou lendo o livro pela segunda vez.
A revelação surpreendente de que a garota lera mesmo as duas extraordinárias obras me realça a tese de que um livro existe enquanto relação com o leitor. Durante a leitura é que ele se torna algo, e a cada leitura um algo diferente, uma construção mútua.

Fiquei com pressa em fornecer todas as informações solicitadas, para a equipe preparar o trabalho da escola. O interesse passou a ser Keiliany, paraibana nascida em Catolé da Rocha e que veio com a família parar em Marabá por conta do serviço do pai, funcionário de uma siderúrgica. O gosto pela leitura vem de cedo, habituada pela mãe “a ler tudo o que tinha pela frente -, menos revistas de fofocas”-, contou.

Garcia Márquez e Cortazar foi ela quem descobriu lendo orelhas de livros na Big Ben, da Nova Marabá, em 2005.

Adora escrever.

– Crônicas, já fiz alguns poemas, mas não é meu forte.

Perguntada sobre o que faz quando entra na Internet:

– Sempre gosto de vagar em sites de literatura, onde me acho. Quando fico um dia sem acessar alguns favoritos, as palavras fogem de mim.

Keiliany é desafiada por mim a escrever naquele momento, diante dos colegas de sala de aula, algo sobre um tema que lhe sugeri baseado no próprio trabalho escolar: Saudades e textos em mim.

Pensativa, demonstrando pouco de nervosismo e timidez, ela tentou refugar, mas estimulada pelos colegas que a olham com extremo respeito, Keiliany aceitou a proposta e sentou-se diante de um computador instalado em sala contígua a minha. Vinte minutos depois, somos convidados a ler o que está exposto no monitor:

Pra falar de saudades, tem de haver texto.
Textos em mim.
Mas as palavras fogem.
Ausências chegam vestidas de saudades.
Escrever textos,
fora do tempo e de lugar,
transforma em mim gesto pleno de sensibilidade
em algo exposto e fragilizado.
Pelas frestas,
teimo encontrar arco-íris fictícios,
ignorando falas generalizadas.
Sentir saudades
é continuar a buscar o que já não sei se quero.
Confiança de encontrar outras eras que não essa.
Que nunca existiram.
Escrevendo assim.
Sem sentir saudade.

Pronto. Para quem gosta de encantamentos, temos a revelação perfeita de uma doçura de garota distribuindo afetos.

Poetisa? Escritora? Só o tempo dirá. No momento, uma adolescente talentosa, sensivelmente criativa.