Ostentação deveria ser crime previsto no Código Penal

Por Leonardo Sakamoto

 

 

Os arrastões em restaurantes chiques na capital paulista já tiveram uma consequência, além de aumentar o número de seguranças privados: estão aflorando o que há de pior na elite bandeirante. Já estava ouvindo aqui e ali mais bobagens e preconceitos que o de costume, mas Mônica Bergamo e equipe, em sua coluna na Folha de S. Paulo desde domingo (17), reuniram vários deles em um pacotão – pelo qual sou imensamente grato.

Se o planeta não for gratinado por nossa ignorância no meio do caminho, tenho certeza que uma sociedade mais avançada vai utilizar esse texto para entender o que deu errado em uma cidade como São Paulo. E não estou falando dos arrastões, mas do discurso bisonho de nossa elite.

Não tenho medo de ser assaltado em meu carro porque não tenho carro. Não receio que levem minhas jóias ou meu relógio caro porque não tenho relógio. Não fico com pavor de entrarem na minha casa e levarem tudo porque meu bem mais precioso é um ornitorrinco de pelúcia. Não me apavoro em andar na rua à noite a não ser por conta do risco de chuva. E por mais que vá a bons restaurantes de vez em quando, devo ressaltar que nunca fui assaltado em nenhuma barraca de cachorro-quente… Acho que já deu para entender o recado. Não tenho medo da minha cidade porque, tenho certeza, ela não precisa ter medo de mim.

Ostentação em um país desigual como o nosso deveria ser considerado crime pela comissão de juristas que está reformando o Código Penal. Eles não estão propondo que bulling seja crime? Ostentação é mais do que um bulling entre classes sociais. É agressão, um tapa na cara.

Mais do que uma escolha pelo crime, a opção de muitos jovens pelo roubo é uma escolha pelo reconhecimento social. Um trabalho ilegal e de extremo risco, mas em que o dinheiro entra de forma rápida. Não defendo essa opção, mas sabemos que, dessa forma, o jovem pode ajudar a família, melhorar de vida, dar vazão às suas aspirações de consumo – pois não são apenas os jovens de classe média alta que são influenciados pelo comercial de TV que diz que quem não tem aquele tênis novo é um zero à esquerda. Ganhar respeito de um grupo, se impor contra a violência da polícia. Uma batalha que respinga em nós, que temos responsabilidade pelo o que está acontecendo, seja por nossa apatia, conivência, desinteresse, medo ou incompetência. A polícia e os chefes de quadrilhas puxam os gatilhos, mas nós é que colocamos as balas na agulha que matam os corpos e o futuro dessa molecada.

Os carros blindados levam para as ruas da cidade a sensação de encastelamento dos condomínios fechados, das mansões muradas, dos shopping centers ou restaurantes caros. Sentimento falso, pois não são muros e chapas de aço que irão garantir segurança aos moradores de uma metrópole como São Paulo. É bom como efeito placebo, para se enganar, mas, mais dia ou menos dia, as “hordas bárbaras” vão engolir a “civilização”. “Hordas” que estão chegando cada vez mais perto, como reclamam os mais ricos.

São Paulo tem mais de 11 milhões de habitantes, mas apenas uns poucos são efetivamente cidadãos, com acesso a todos os seus direitos previsto em lei. Lembra a antiga Atenas, com uma democracia para uns poucos iluminados e o trabalho pesado para o grosso da sociedade, composta de escravos. Enquanto uns aproveitam uma vidinha “segura” dentro de clubes, restaurantes, boates, lojas, residenciais e carros, outros penam para sobreviver e ser reconhecidos como gente. Para cada assassinato em Moema, mais de 100 são mortos no Grajaú. Só que a morte de uma jovem em Moema causa mais impacto na mídia do que a de 100 no Grajaú. Ou no Campo Limpo, bairro em que cresci. A gente fica sabendo por lá que tem vida que vale mais que outras, por causa do dinheiro.

Qual a causa da violência? A resposta não é tão simples para ser dada em um post de blog, mas com certeza a desigualdade social e a sensação de desigualdade social está entre elas. Muito do preconceito presente nos comentários trazidos pela coluna da Folha abaixo vai no sentido contrário a uma solução, isolando os ricos ainda mais, deixando-os alheios ao resto da cidade (por ignorância ou má fé). Corta-se com isso a dimensão de reconhecer no outro um semelhante, com necessidades, e procurar um diálogo que construa algo e não destrua pontes. Há riscos de assaltos? Sempre há e eles vão acontecer, ainda mais em um território que muitos têm e outros minguam. Mas deve se ter em mente que há atitudes que pioram o quadro.

Temos que garantir liberdades individuais e a segurança de usufruí-las. Combater a violência, garantir o direito de sair sem ser molestado. Mas isso só será possível com uma sociedade menos desigual e idiota. Ou a cidade será boa para todos ou a aristocracia que sobrar após o caos não conseguirá aproveitar sua pax paulistana.

 

Seguem os melhores momentos da coluna de Mônica Bergamo:

 

São Paulo “tá um porre total, um tremendo baixo-astral”. Desde que começou a onda de arrastões em restaurantes da cidade, a socialite e tradutora Alexandra Silvarolli, a Alê, mudou a sua rotina. “Tô jantando mais cedo. Vou às 20h30 e me ‘pico’ do lugar às 22h30.” Ela também adotou uma política de redução de danos quando sai: “Tiro minhas joias, total”.

As estratégias para enfrentar esse momento chato têm sido mais ou menos as mesmas: jantar mais cedo, usar roupas básicas, tipo jeans, para não chamar a atenção, esconder o celular, providenciar a “bolsa do ladrão”: aquela que não tem nada dentro e que não fará muita falta se for surrupiada.

“Tô morrendo de medo. Se levarem uma bolsa Hermès minha, vou chorar mais do que tudo”, diz a decoradora Alessandra Campiglia, grudada em sua Chanel. “Saio de casa sem nada. Meu marido leva a carteira dele.”

“Às vezes [você] senta em cima do celular no restaurante [para escondê-lo do ladrão]. Mas, com uma arma na cabeça, eu faço o que for. Quando me roubaram o carro, levaram até a nécessaire com absorvente”, diz a apresentadora Barbara Thomaz.

Outra novidade é o “celular do ladrão”. “Já saí sem meu Blackberry. Levo um telefone bem antigo, daqueles vagabundos”, diz Ana Tosto, mulher do advogado Ricardo Tosto. “Outro dia, fui na Vila Madalena e pensei: ‘Vou com uma roupa discreta, uma calça jeans’. Só uso aliança e um brinco de bijuteria. Mas deixar de sair eu não vou.”

O medo está no ar e é assunto das rodas no circuito Jardins/Higienópolis/Morumbi/Itaim Bibi. São bairros repletos de seguranças privados. Ainda assim, viraram alvo de quadrilhas.

O arrastão ao restaurante La Tambouille, no Itaim, há duas semanas, foi um marco. “Uma surpresa! Tá cada vez mais perto da gente. Os ladrões estão audaciosos!”, diz Carola Porto, sócia da Agenda Black, grupo no Facebook que reúne mulheres de alto poder aquisitivo.

“É um absurdo você ir a um restaurante e pensar que pode ser metralhada. Teve arrastão em vários que a gente frequenta. O La Tambouille… Acho absurdo, surreal”, diz Talita de Gruttola, voluntária no Hospital do Câncer.

“São lugares aonde a gente vai sempre. O La Tambouille, o Carlota, gente! E a Lanchonete da Cidade [nos Jardins]? É do lado de casa, vivo lá com minhas filhas! Há dois meses comecei a ir só a restaurantes de shoppings: no Rodeio do Iguatemi, no Ritz do Iguatemi, no Empório Central e na Lanchonete da Cidade do Cidade Jardim”, diz a advogada Luciana Natale.

Numa roda de amigas que na semana passada se encontraram em evento beneficente na joalheria de Jack Vartanian, nos Jardins, ela fala da nova rotina. Champanhe na mão, conta que o grupo se reúne uma vez por semana para almoçar. “Agora estamos indo ao clube Paulistano [na rua Estados Unidos]. Como somos todas sócias de lá, fica mais fácil e seguro. Dá para entrar, estacionar o carro.” Daniela Cilento, uma das amigas, diz que não tem “medo de nada, nada. Se bem que já passei por uns sustos”.

Recentemente, almoçava no Girarrosto, na avenida Cidade Jardim. “Entra um cara mal vestido gritando para os seguranças: ‘Não me bate, não me bate’. A Mika [sua amiga] já foi tirando o relógio, escondendo a bolsa. Era um mendigo.” “É o que menos me assusta, sabia?”, diz Luciana. “Mas você hoje não sabe se é mendigo ou se vai tirar uma arma”, diz Dani. “Um cliente deu R$ 10 para o homem, que disse aos seguranças: ‘Tá bom, eu saio. Mas vocês não vão me bater lá fora, né?’.”

Chef de cozinha, Paula Passos conta que “no Kosushi [Itaim] é que é legal. Tem um segurança de uns 3 m de altura!”. Mostra a foto que fez do funcionário no celular. “Duvido que assaltem lá.”

“No dia em que tiver carro blindado, prefiro mudar de país”, diz Dani Cilento. “É melhor morar na Suíça, né?”, responde Paula. “Ah, não. Deixar o Brasil? Prefiro ter um carro blindado”, afirma Luciana. “Tem que fazer como nos países árabes: roubou, corta a mão”, sentencia Dani.

A modelo Cassia Avila afirma que tem “orado para Jesus”. E evita andar a pé.

Na semana passada, percorreu de carro os dois quarteirões que separam a joalheria do marido, Jack Vartanian, na rua Bela Cintra, e o restaurante Gero, na rua Haddock Lobo. Nas lojas vizinhas ao restaurante da rede Fasano, 15 seguranças cuidam das vitrines de Dior, Louis Vuitton e NK Store. Nem assim ela se sente segura.

Quando Cássia tentou entregar o carro ao manobrista, um marronzinho disse que a multaria. “Olha isso, ou você é multado ou assaltado.” Ela está no limite. “Não dá mais pra morar no Brasil. Nossa filha [de nove meses] vai estudar em escola americana. E depois vamos nos mudar.”

Para não abrir mão do prazer de jantar fora, Carola Porto diz que começou a frequentar os restaurantes que já foram assaltados. “Eu acho que um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar. No sábado eu fui ao La Tambouille. Tava tranquilo.”

“Com essa história de arrastão, prefiro convidar as pessoas para jantar na minha casa”, diz a administradora Flavia Sahyoun. “Roubam tanto no Brasil que pensam que todo mundo que tem dinheiro é porque roubou e não porque trabalhou. Virou um país tão avacalhado…”

Depois do assalto à pizzaria Bráz, em Higienópolis, que ela frequentava, a atriz Laura Neiva pede comida em casa. “Tenho um pit bull e agora só ando por Higienópolis com ele.” Outro morador do bairro, o humorista Tom Cavalcante não corre mais nas ruas. “Amo SP e estou muito triste.” Ele também evita ir a restaurantes.

A consultora Fabiola Kassin só vai a lugares “dentro de shopping, de tudo. A gente vai no bar do [hotel] Fasano, no [hotel] Emiliano. Infelizmente, virou isso, uma bolha, não tem como estourar”.

“Alguém tem que tomar atitude. Sei lá, governo. Daqui a pouco, o Exército entra na rua. Está mais seguro morar no Rio do que aqui. Está ridículo. No Rio você para no quiosque e toma uma cerveja. Aqui não posso nem ir ao bar da esquina. Não tem mais rico, pobre, assaltam qualquer coisa, boteco, restaurante. Virou uma zona. Quando saio, tiro tudo, tu-do!”.

O hábito já gerou aborrecimentos paralelos. Outro dia, Fabiola desparafusava uma pulseira para tirá-la do braço, escondendo a joia enquanto comia pastel nos Jardins. “Perdi o parafuso.”

“”É um absurdo você ir a um restaurante e pensar que pode ser metralhada” – TALITA DE GRUTTOLA
“Celular eu levo dois, se roubarem um o prejuízo não é tão grande.” – CAMILA DINIZ
“São lugares aonde a gente vai sempre. O Tambouille, o Carlota, gente!” – LUCIANA NATALE
“Tem que fazer como nos países árabes: roubou, corta a mão” – DANI CILENTO

 

 

PS: O texto ganhou uma boa repercussão, o que é ótimo. Não precisam concordar comigo, aliás prefiro que discordem. E podem me espinafrar à vontade – o nipobrasileiro é, acima de tudo, um forte. Mas, por favor, vamos interpretar o texto, vai! Por exemplo, o que o blogueiro quer dizer quando afirma que seu bem mais precioso é “um ornitorrinco de pelúcia”? Será que ele não tem cama, nem TV, nem computador ou celular e vive apenas com um felpudo animal em uma choupana, tecendo sua roupa com linho que colheu do campo e cultivando seus próprios remédios? – rs. Teve gente que procurou desesperadamente na internet para provar que eu tenho smartphone ou notebook. Pessoal, se lessem meu blog diariamente veriam que eu mesmo já escrevi várias vezes que tenho ambos (carro não adianta porque não tenho mesmo). E discuto as contradições do capital. Mas este texto não é sobre ter, mas como nos relacionamos com esse “ter”. E o medo de perder e deixarmos – com isso – de “ser”. E o que é precisar “ter” para “ser” e os impactos disso na sociedade. Prometo voltar ao assunto mais tarde. Enquanto isso, discutam de maneira saudável.