Artigo da advogada Mary Cohen, publicado no portal Amazônia Real, que acaba de ser incluído na relação de finalistas do VII Concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo (categoria Mídia On Line, Alternativa e Comunitária), aborda a questão da impunidade no campo, tendo como foco o julgamento de  Vitalmiro Bastos de Moura, o “Bida”,

Mary já andou escrevendo também para o nosso blog, quando tratou da maioridade penal.

Leiam o artigo publicado no Amazônia Real, que é editado pelas jornalistas  Liége Albuquerque, Kátia Brasil e Elaíze Farias.

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O julgamento de um mandante

Mary Cohen   

 

O fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o “Bida”, foi condenado a 30 anos de reclusão pela coautoria no homicídio duplamente qualificado da missionária norte- americana, naturalizada brasileira,  Dorothy Stang, 73 anos, morta em 2005. Foi o quarto julgamento e a sentença foi prolatada pelo juiz titular da 2ª Vara do Júri de Belém, Raimundo Moisés Alves Flexa, às 23h30 do dia 19 de setembro de 2013.

Essa foi a sexta sessão de julgamento popular em que acusados de participação e execução da religiosa, morta em Anapu, no sudoeste do Pará, foram submetidos.

O primeiro julgamento, em 2007, “Bida” foi condenado a 30 anos de prisão. No ano seguinte, teve direito a novo júri. Na ocasião, foi absolvido. No entanto, o julgamento foi anulado por fraude processual. O terceiro julgamento condenou Vitalmiro Bastos de Moura, mas, alegando cerceamento de defesa, os advogados do fazendeiro conseguiram a anulação da sentença.

Por maioria, os jurados consideraram o réu culpado e a sentença foi fixada em 30 anos de reclusão. Eles foram sorteados em um universo de 25 jurados efetivos. O plenário do Fórum Criminal de Belém permaneceu lotado durante todo o julgamento.

A defesa do fazendeiro levou, como novidade para obter sua absolvição, uma testemunha, o agente da Polícia Federal, Fernando Luiz da Silva Raiol, que participou das investigações de identificação dos autores do crime. Em depoimento, Raiol acusou o então delegado de Anapu, Marcelo Luz, de ter fornecido, ao executor Rayfran das Neves Sales, a arma que efetuou os disparos, posto que cobrava, dos fazendeiros, para fornecer segurança particular.  Raiol foi condenado por extorsão e sequestro, sendo que, na prisão, conheceu o “Bida”, onde se tornaram grandes amigos.

O ponto alto, digamos assim, da acusação foi a apresentação de trechos do documentário sobre a missionária, onde os advogados de defesa do Bida, despudoradamente, achincalham a memória da missionária assassinada, o que me fez sentir vergonha alheia, confesso.

O julgamento do fazendeiro, infelizmente, é uma exceção nos crimes por encomenda, tanto é assim que ele, o “Bida”, é o único mandante atualmente preso aqui no Pará, não obstante o Estado ostente o triste título de campeão de assassinatos por encomenda no campo.

A impunidade pelos crimes cometidos, a grilagem, a ocupação predatória da terra, a falta de regularização fundiária e a não implementação de uma reforma agrária são apontadas como as principais causas da violência no campo.

Desde a ditadura militar, o modelo de “desenvolvimento” para a Amazônia se baseia na grilagem de terras com prática de violência na destruição dos recursos naturais para produção agrícola e pecuária, além dos grandes projetos.

A cadeia da impunidade engloba, em sua maioria, a seguinte equação: o financiamento do agronegócio pelo Poder Executivo, a flexibilização das leis pelo Legislativo e a impunidade pelo Judiciário, simples assim.

A região é tratada como se fosse uma área desabitada, mas é povoada por comunidades milenares, como as indígenas, e seculares, como as de quilombolas, pescadores e ribeirinhos. Essas áreas habitadas, por sua vez, carecem da regularização acompanhada, é claro, da reforma agrária.

A impunidade em relação aos crimes cometidos contra as pessoas e o meio ambiente incentiva a violência no campo, sendo seu principal combustível.

Além da impunidade, a violência também é associada às deficiências dos programas de reforma agrária. Sem atividade econômica certa e necessitando sobreviver, o assentado muitas vezes vende o lote e migra para área onde volta a conviver com o antigo problema da disputa pela terra ou, ainda, permanece no lote, mas recorre à extração ilegal da madeira, acentuando o problema do desmatamento.

Esse, infelizmente, é o cenário atual e o fato de um mandante estar preso não significa que novos tempos estão chegando. Ainda há muito chão pela frente até que o cenário mude de verdade e a Amazônia possa seguir seu curso sem espirrar o sangue dos seus defensores.