Mês de maio com um frio agradável cobrindo o Rio de Janeiro, corria o ano de graça de 1974.
Por volta de 10 horas da manhã, eu e um amigo baiano, Leonizar, descíamos a Glória em direção ao Aterro do Flamengo, onde havia uma academia de música na qual a gente estudava violão com o mestre Noca da Portela. Por ali zanzavam o iniciante Guinga, Paulinho da Viola, Nelson Cachaça, Elton Medeiros, Ary do Cavaco, o admirável Cartola (sim, eu via o Cartola quase todos os dias assim na minha frente!) e outros belos nomes do samba de raiz. Nessa época, samba se chamava um só. Era samba.
Metade da mesada que meus pais mandavam, era para pagar o caríssimo curso. Em verdade, eu freqüentava a academia para aprender mesmo violão e ficar saracoteando diante de meus ídolos. Leonizar queria apenas saracotear. Um dia me disse: – Cara, tenho vontade de dar um beijo na boca do Cartola! Depois que fizer isso, morrerei abençoado pelos deuses da música. Léo era um maluco beleza.
Na academia do Noca aprendi a dar um swing malandro na batida da mão direita e a construir seqüências harmônicas que, misturadas à suavidade do balanço dissonante da bossa-nova, deram a mim estilo pessoal de tocar violão.
Verdade é que vivi esse tempo gostoso. Acumulei muitas histórias entre as andanças de Santa Teresa aos morros cariocas, em busca de samba e outras cosititas más. Tempo em que se andava no meio das ruas cariocas sem medo de balas perdidas. A bala perdida era o canto carregado dentro da gente noturnamente, entre enfurnada e outra.
Como dizia, o ano era 1974. Eu e Leonizar saíamos andando de Santa Teresa, pegávamos os Arcos da Lapa e tome perna em direção ao Aterro. Religiosamente, esse percurso ocorria às segundas, quartas e quintas. Na sexta, não. Nesse dia, sábado e domingo, Noca acordava depois das 14 horas porque vivia colado no samba ate o sol levar pra cama a boemia.
Chegando no Largo da Glória, de repente Leonizar pára, segura meu braço e aventura:
– Aquele é o poeta. É o poeta! É Drummond, ‘baixinho’!
Olho para a direção em que o amigo apontava e vejo um senhor parcialmente calvo, vestindo calça branca e uma camiseta regata da mesma cor. Estava lá. Sentado em um banco, sozinho, cercado apenas pelos pombos às centenas sobrevoando-o, como a protegê-lo ou a admirá-lo. Atrás da figura sentada elegantemente lendo o JB (Jornal do Brasil), a estátua de Pedro Álvares Cabral, belo monumento idealizado por Rodolfo Bernadelli. Fotografia maravilhosa, fico a imaginar hoje.
Sim, era Carlos Drummond de Andrade. Ficamos parados, em silêncio, olhando a uma distância de 50 metros. Voltamos a nos entreolhar. Em voz baixa, disse ao amigo: – Vou falar com ele. Sou seguro pelo braço: – Não, vamos ficar aqui sentados, só olhando.
E nos sentamos em um banco próximo, a admirá-lo. Nada falávamos. A cada pagina folheada do jornal pelo poeta, Leonizar comentava: – É o Caderno JB, deve ser na sessão de cinema ou lendo o Tárik de Souza. (critico musical muito respeitado)
Vinte minutos depois, Drummond pára de ler, estende o olhar pelo horizonte da Glória e faz brincadeiras com os pombos. Alguns se aproximam dele e se afastam pelo piso da praça. Chegam perto aos pés do escritor e se voltam, num vai e vem parecido com o movimento ritmado de versos e cantos. Sentado, Andrade ria da dança dos pássaros.
Eu a tudo observava, com o coração pulsando forte.
Passado bom tempo, a vista do Maior dos Poetas pára em nós dois ali absortos. O olhar dele fixa na gente e cheio de coragem lanço um tchauzinho em sua direção. Drummond sorri, segura as duas mãos e leva-as ao seu peito, dobrando em seguida a cabeça em gesto de reverência à saudação lançada por mim timidamente.Aquilo foi o máximo. Não penso duas vezes e berro: – Podemos falar com o senhor?
De onde está, Drummond apenas consente com a cabeça. “Vamos”, saio puxando Leonizar que teimava em ficar apenas observando nosso ídolo. Perto dele, o cumprimentamos com aperto de mãos:
– Estamos felizes em vê-lo aqui na praça. Nunca imaginávamos, vindos de tão longe, encontrá-lo desse jeito, me apresso, afoito.
– Vocês são de onde?, pergunta com voz pausada, nos olhando entre as lentes brancas dos óculos.
– Eu sou do Pará e ele da Bahia. Estudamos aqui.
– Isso. Façam isso. O Brasil precisa da juventude preparada., elogia e se cala. Depois vira o olhar para os pombos. Ficamos sem jeito. Continuar o papo? Leonizar dá o tom:
– Já vamos, mas estamos muito felizes em conhecê-lo, poeta.
Nosso ídolo apenas sorri e bate palminhas com suas mãos já surradas pelo tempo. Começamos a andar em direção ao Aterro, Leonizar fala perto de meu ouvido, baixinho: – Você quase põe tudo a perder, falando pelos cotovelos, dava pra gente ficar um pouco mais olhando ele…. De repente, num estalo de loucura, me viro, e volto em direção ao poeta. Diante dele, peço: – Posso dar um beijo em sua testa?
Educadamente, sem emitir uma palavra, Drummond confirma positivamente com a cabeça. Eu me aproximo e dou-lhe um beijo carinhoso na fronte. E retorno correndo para onde Leonizar esperava, olhando a cena confuso, mas também feliz por eu ter conseguido dar um beijo no Poeta. Meu amigo ficou bom tempo no Rio e nunca beijou a boca do Cartola.
Hoje, 17 de agosto, faz 20 anos que Drummond morreu.
Anonymous
19 de agosto de 2007 - 23:15…Da Silva disse …
Cada vez que leio seus comentários aqui fico descobrindo um Hisroshi que,sinceramente, não percebi nas conversas que tivemos pessoalmente.
Parabéns pelo nível, que mantém o blog como um dos melhores por essas bandas.
Anonymous
18 de agosto de 2007 - 19:11Olha, como eu conheço esse jeito carinhoso seu, fico apenas a admirá-lo ainda mais. Deus te abençõe sempre.
Anonymous
18 de agosto de 2007 - 02:21Hiroshi e esses “monstros sagrados”da MPB também iam para a academia aprender a tocar violão ou ja tocavam?
Anonymous
18 de agosto de 2007 - 01:57Viver esses momentos com tanta ansiedade e emoção deve ter sido positivo em dia formação humana. Gosto de ler coisas assim, construtivas. Não sei como me comportaria diante de um ídolo da envergadira do Drummond, mas acho que o beijaria tamb;em, sele ele permitisse.
Eleonora (De Marituba)