“Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, pois cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra. Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, mas quando parte nunca vai só nem nos deixa a sós. Leva um pouco de nós, deixa um pouco de si mesmo. Há os que levam muito, mas há os que não levam nada.” (Saint-Exupéry -, meu escritor preferido de infância.)
Acordo neste domingo contemplando o quanto o tempo aplaca nossas vidas. Verdade que amadurecemos, mas também perdemos coisas. Pior: as perdas somente são sentidas depois de ocorrerem. Poderia ser ao contrário. Dessa forma, nos seria dada a oportunidade de evitá-las.
Contemplando o tempo a nos devastar, descobrimos a qualidade de vida absolutamente rotineira. Repetição de tarefas e experiências em favor da sobrevivência.
É isso: estamos apenas passando, humanamente medíocres, previsíveis.
Hoje, acordei bem cedo, não passava ainda das 6 horas. E pra não fazer tudo igual nessas manhãs domingueiras, fui até a orla sentir brisa do Tocantins em processo de vazante.
Belíssimo, água morna, calmamente seu leito desce buscando o mar.
O Tejo é mais belo que o rio que corre
Pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio
Que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre
Pela minha aldeia
Os versos de Fernando Pessoa traduzem essa sensação de manhãs de domingo na beira do nosso rio amazônido.
Parei em frente a casa onde nasci, sentei-me no calçadão da orla, de costas pro rio, e fiquei a espiar o local onde pisei tantas noites e dias consumindo meus tempos de menino peralta, onde nada se repetia.
Lembrei-me de Odilonzinho, Ademar, Lúcio Miranda, Arthur, Salim, minha primeira namoradinha, Vera Lúcia, de quem fugi, em desespero, ao ser beijado no rosto pela menina de 11 anos.
Não há objetividade quando se trata do afeto, mas de impressões, pequenos lampejos que impregnam a alma de algum sentimento esparso, aspectos que suscitam em nós algumas incertas reflexões no exercício do convívio da amizade.
Desperto de lembranças. E viro as costas para a casa onde eu nasci.
De frente pro rio, do outro lado do Tocantins, uma canoa ruma sentido porto. Mais à direita, a casa da fazenda do Senhor Farid, intacta, do mesmo jeito que foi construída a nem sei quantos anos.
Do outro lado da cidade, ali eu achava ser a casa dos mistérios, um mundo distante no meu entendimento de menino de 8 anos.
Do outro lado do arvoredo, onde marrecos sobrevoavam a espessa mata impenetrável de minhas visões.
Quantas noites fiquei ali, perto da ribanceira, contemplando estrelas enfeitando o céu, lua cheia, a figura de São Jorge, montado em seu cavalo branco.
Era como se eu flutuasse no espaço iluminando densa floresta que ainda existia do outro lado.
Pra mim, ali havia índios bravos, animais ferozes, fantasmas, duendes e almas penadas.
O vento frio, do início desta manha de domingo, soprava forte a revirar a folhagem do arvoredo do outro lado do rio.
Virei as costas, e voltei para o meu mundo corriqueiro, olhando dois alegres bem-te-vi passando sobre minha cabeça, cantando em direção a Fazenda do Senhor Farid Salame.
Entrei no meu carro, rumando (e ruminando saudades) para escrever este texto.