A educadora Cláudia Borges  nos apresenta mais emoções na manhã deste domingo.

Colaboradora do blog, a jovem contadora de histórias viaja pelo mundo da fantasia, buscando formas de mostrar às crianças o mundo fascinante que aparece a cada novo livro aberto.

Um dos ofícios mais antigos de que se têm notícia, os contadores de história sabem como ninguém desse fascínio.

E é através da palavra, que Cláudia encanta seus pimpolhos a cada nova sessão de contação.

Além de exercitar o prazer de ouvir, ainda mais nesse mundo tão conturbado em que vivemos, onde quase não há espaço para se escutar, Cláudia Borges ainda consegue dar ênfase ao valor da palavra, porque o contador resgata esse ouvir e esse falar.

Quando conta uma história, certamente ela potencializa cada pessoa a contar depois a sua história, fazendo com que o indivíduo se exponha à criação e deixe-se transformar por esse jogo

Se antigamente as histórias eram contadas somente pelos pais (este blogueiro fez muito isso, deitando com seus filhos em torno de fascinante histórias inventadas na hora)  e avós na cabeceira da cama ou ao redor de uma fogueira, hoje, o contador se tornou uma profissão e está presente nas escolas, shoppings, praças, hospitais e feiras.

A essência de narrar não mudou, mas muitos grupos se valem de outras técnicas como o teatro, os bonecos e a música para dar uma incrementada nas fábulas, contos e lendas.

Cláudia Borges tem seu estilo  próprio, inconfundível.

Aí está mais uma historinha de nossa contadora:

 

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Era uma vez…

“[…] histórias existem para serem contadas, serem ouvidas e conservarem aceso o enredo da humanidade […]”.

Cléo Busatto

 

Basta dizer “Era uma vez”, e não será preciso de muita coisa para partimos para um mundo fantástico, pois, logo que dizemos essas três palavras combinadas, nos transportamos para um tempo fora do tempo, para um outro lugar tão distante que nos aproxima um do outro.

O narrador e ouvinte cúmplice, em uma relação dialógica, assim como Sherazade que tecia histórias, toda noite, para manter-se viva e poupar outras vidas, conquistou o interesse do Rei Shariar, que por sua vez, conduzido pelo fio da história, curou-se através do poder das palavras.

Quem não gosta de ouvir histórias?

Tanto crianças como adultos ou mesmo idosos apreciam uma boa história.

Ouvir e contar histórias é da natureza humana. A literatura tradicional oral, entendida como popular, adapta o conflito ao ouvinte, um momento democrático de interação.

Cada indivíduo é livre para criar suas paisagens internas, suas imagens, rememorar suas recordações. A história ouvida é o primeiro livro que se instala na memória do sujeito.

E vieram as histórias de mundo imaginário, uma fonte inesgotável. Essas narrativas que passaram de boca em boca e que alimentam a alma e revigoram o poder criativo da arte das palavras.

Da oralidade para a escrita, da voz e gestos dos narradores, agora, eternizados nas páginas dos livros e, mais recentemente, no ciberespaço.

A leitura é algo para ser prazeroso e pode ser devorado e não visto como uma mera obrigação, Monteiro Lobato propõe a invenção do “livro comestível”, em A reforma da natureza, através das travessuras da boneca Emília.

Ler Monteiro Lobato é trazer para a contemporaneidade discussões polêmicas que contribuem para despertar o senso crítico nos jovens leitores, sem contar a diversão e boas risadas garantidas por conta das clássicas travessuras da boneca Emília.

Quando crianças, um de nossos desejos talvez fosse o de nos tornarmos personagens das histórias que eram lidas ou contadas por nossos avós, pais ou professores.

Nas minhas lembranças posso ainda sentir o sabor das aventuras da minha personagem preferida, a Marquesa Emília de Rabicó. Eu fui Emília em várias aventuras do Sítio do Pica Pau Amarelo.

Hoje, as crianças, podem habitar o mundo fantástico interativo na tela do computador e/ou do smartphone. O ouvir ou ler uma história envolvente possibilita aos pequenos leitores e ouvintes a vivência de personagens e a elaboração de possíveis conflitos internos. Assim, independente do suporte em que as histórias estejam disponíveis, sempre estarão vivas, enquanto houver pessoas prontas para ler, contar e ouvir tais narrativas inerentes a nossa essência.

O primeiro encontro da criança com o texto é através da oralidade, momento de estar junto com os familiares. A voz e os gestos, da mãe e/ou do pai dar corpo ao texto, as ilustrações e as cores aguçam os sentidos do pequeno leitor. São os primeiros passos para o mundo fantástico que embala as noites de sono.

 

Cláudia Borges  – Professora de Literatura por desafio, contadora de história por amor, graduada em Letras pelos sonhos, pós-graduada em Língua Portuguesa por dedicação e Mestranda em Letras por curiosidade…

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Trecho do livro: A Reforma da Natureza

 

LIVRO COMESTÍVEL

 

Monteiro Lobato

 

“– […] Que acha que devemos fazer para a reforma dos livros?

A Rãzinha pensou, pensou e não se lembrou de nada.

– Não sei. Parecem-me bem como estão.

– Pois eu tenho uma ideia muito boa – disse Emília. – Fazer o livro comestível.

– Que história é essa?

– Muito simples. Em vez de impressos em papel de madeira, que só é comestível para o caruncho, eu farei os livros impressos em um papel fabricado de trigo e muito bem temperado. A tinta será estudada pelos químicos – uma tinta que não faça mal para o estômago. O leitor vai lendo o livro e comendo as folhas; lê uma, rasga-a e come. Quando chega ao fim da leitura, está almoçado ou jantado. Que tal?

A rãzinha gostou tanto da ideia que até lambeu os beiços.

– Ótimo, Emília! Isto é mais que uma ideia-mãe. E cada capítulo do livro será feito com papel de um certo gosto. As primeiras páginas terão gosto de sopa; as seguintes terão gosto de salada, de assado, de arroz, de tutu de feijão com torresmos. As últimas serão as da sobremesa – gosto de manjar-branco, de pudim de laranja, de doce de batata.

– E as folhas do índice – disse Emília – terão gosto de café, serão o cafezinho final do leitor. Dizem que o livro é o pão do espírito. Por que não ser também pão do corpo? As vantagens seriam imensas. Poderiam ser vendidos nas padarias e confeitarias, ou entregues de manhã pelas carrocinhas, juntamente com o pão e o leite.

– Nem precisaria mais pão, Emília! O velho pão viraria livro. O Livro-Pão, o Pão-Livro! Quem souber ler lê o livro e depois come; quem não souber ler come-o só, sem ler. Desse modo o livro pode ter entrada em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos. Otimíssima ideia, Emília!

– Sim – disse está muito satisfeita com o entusiasmo da Rã. – Porque, afinal de contas, isso de fazer os livros só comíveis para o caruncho é bobagem – podemos fazê-los comestíveis para nós também.

– E quem essa ideia a você, Emília?

– Foi o raciocínio. O livro existe para ser lido, não é? Mas depois que o lemos e ficamos com toda a história na cabeça, o livro se torna uma inutilidade na casa. Ora, tornando-se comestível, diminuímos uma inutilidade.

– E quando a gente quiser reler um livro?

– Compra outro, do mesmo modo que compramos outro pão todos os dias.

A ideia, depois de discutida em todos os seus aspectos, foi aprovada, e Emília reformou toda a biblioteca de Dona Benta. Fez um papel gostosíssimo e de muito fácil digestão, com sabor e cheiro bastante variados, de modo que todos os paladares se satisfizessem. Só não reformou os dicionários e outros livros de consulta. Emília pensava em tudo.” (p.37-38).

(Fonte: LOBATO, Monteiro. A reforma da natureza. São Paulo: Globo, 2008. 72p.)

 

Nota do blog: os grifos em negrito são da própria educadora