No Dia Internacional da Mulher, o  blog abriu  espaço para o registro de depoimentos  significativos, e que de tanto interesse provocado, elevaram os índices de audiência do sítio para números extratosféricos.

Somente hoje marco presença  para prestar homenagem pessoal às mulheres, beijando com todo meu carinho uma pessoa  singular, beijo que fiz questão de vivê-lo diante de uma figura humana que representa a alma brasileira de tantas mulheres sofridas.

Por volta de 16 horas de quinta-feira, 8, com os pés literalmente na estrada, rumei em direção a uma vicinal da  BR-153, município São Domingos do Araguaia, para visitar uma velha amiga: dona Mirian Dolores Maia da Silva, ou simplesmente Dona Dolores, guerreira  quebradeira de coco babaçu que mora com três filhos  de 10, 11 e 13 anos.

Dona Dolores teve oito  filhos: dois morreram pós nascimento, três moram em lugares por ela desconhecidos, e o restante lhe acompanha na roça.

Sozinha, sem marido, e “nem aderentes – como  diz -, nossa personagem  trabalha de seis  da manhã às cinco da tarde, zanzando em pastos de terras de fazendeiros recolhendo babaçu.

Atividade praticamente exclusiva de mulheres, quebradeira de coco trava batalhas desiguais para ter uma ponta de dinheiro à mão capaz de auxiliar na subsistência.

O maior dos obstáculos, atualmente, é a garantia da matéria-prima (o coco babaçu) que permita a cada quebradeira beneficiá-la, de modo artesanal,   na produção de azeite culinário, carvão vegetal e sabão.

 

– Os donos das terras (fazendeiros) não querem que a gente entre  mais nos seus pastos para buscar coco. Eles  preferem vender o coco para os produtores de carvão vegetal para as indústrias lá de Marabá, diz.

 

Os dois olhos tortos de Dona Dolores caracterizam a sua visão zarolha, mas a alegria incontida revelada no riso destemperado que ela solta a cada brincadeira que eu exercito ao seu lado, é o aroma esvoaçante de densas sentimentalidades misturado a cheiros de óleo de babaçu, aferventado  em panelas estiradas nas duas bocas do fogão de lenha tosco, e quase  caindo, fixado na parte externa do barracão  de sapé que lhe serve de lar doce lar.

Fazendo apressada leitura de como se possa viver num lugar sem o mínimo de conforto, a  vida de dona Dolores, às vezes, mais parece um poço fundo, onde a tendência é cair  de cabeça e mergulhar  no caos.

Diante dos meus olhos, o corpo frágil e malmente alimentado de nossa amiga – surgem  turbilhão de imagens, sons, pensamentos, nuvens densas e revoluções interiores.

Ela é uma quebradeira de coco, onde seu trono é o de tantas outras  que se embrenham nas matas buscando a amêndoa que dá sustento, às vezes roubando-lhes  vidas.

Dolores conversa comigo e  quebra coco,  abrindo as entranhas do babaçu  com uma machada.  Já sem a força de antes,  seu braço empunha o velho macete certeiro,
aos golpes, abrindo  o coco ao meio. E,   em mil pedaços, seus  sonhos que ficaram no passado.

Diariamente, ela está ali naquele mesmo lugar em frente ao seu barraco, labutando para transformar o quebra-quebra em azeite e sabão. Ou gongos apetitosos  assados ao espeto na brasa do mesmo coco que o alimentou.

 

O que você mais deseja, morando aqui sozinha, ao lado de três filhos? -, pergunto.

 

Olhando a um ponto qualquer do infinito, dona Dolores pára de bater a marreta com a qual ela quebra o coco  e silencia.

O silencio toma conta do ambiente.

Ao longe, ouve-se apenas o alegre deslocamento de periquitos cantadores  em busca de lugar para dormir – já passa das 17 horas.

Absorta em seus pensamentos, minha amiga esconde o choro que desaba sorrateiramente dos olhos caolhos.

Tento ajudá-la.

 

Sair daqui e ir pra cidade, ver TV todo dia, morar numa casa com energia elétrica, é o mínimo que se pode querer morando aqui, né?

 

O silencio permanece, até que Dolores fala baixo, sem o riso que lhe caracteriza:

 

Queria só esquecer tudo de ruim que já vivi…

O futuro não lhe pertence. O hoje, incerto, nada lhe acrescenta.

Dolores sofre do passado, perdeu sua vida no passado.

As lembranças criam corpo e lhe remetem de volta, numa tristeza infinita.

Não é tempo nem hora de atormentá-la com tudo o que lhe faz tristeza.

Recomendável seria entregar-lhe à vida, outra vez.

Fazer esforço para ajudá-la a emergir, na intenção de resgatar o que sobrou de sonhos – no passado -,  e, se nada mais restou, consertar o que sobrou dela mesmo, costurar  retalhos, colar  cacos.

O que tanto lhe atormenta?

Um  ex-companheiro  violento? A dor da perda dos filhos? Ausência simplesmente de esperança diante de incertezas reprimidas no dia a dia pela sobrevivência?

De repente, começo a imaginar as dificuldades que essa sofrida mulher experimenta diariamente para manter três filhos e, de quebra, quebrando coco, conseguir sobras pra sua vida pessoal. Não deve sobrar nada, do pouco conquistado.

No Dia Internacional da Mulher, imagino, quantas Dolores iguais a ela somam-se em desatinos, buscando algo que nunca imaginaram porque o passado lesionou suas almas, o presente é doloroso e, o futuro, inexistente em seus planos de vida.

A cultura extrativa do babaçu e a história de vida de Dolores é uma tradição que passa de mãe para filha. Em seu barracão de barro e cobertura de palha, Dolores mora ali há 22 anos.

Ela deriva antepassados da década de 1920, sem nunca ter encontrado um modo digno de viver.

A safra do babaçu dura oito meses,  de setembro a abril.

A renda obtida pela colheita e retirada da amêndoa do coco ainda é baixa.  Dolores recebe em média R$  1,20 pelo quilo da amêndoa.

O Governo Federal lançou o programa de preço mínimo para o babaçu, aumentando o valor pago às quebradeiras. Até agora, contudo, pouco benefício levou à minha amiga.

Para receber o benefício,  Dolores, assim como as demais  quebradeiras, tem de atender algumas exigências. Uma delas é o cadastro no Ministério do Desenvolvimento Agrário, a chamada DAP, Declaração de Aptidão ao Produtor.

Outra exigência é a abertura de conta em um banco. Como a maioria das quebradeiras nunca foi à escola, inclusive Mirian, não sabe nem ler nem escrever, isso se torna uma dificuldade.

Muitas quebradeiras não tem nem documento. As exigências bancárias são grandes. Muitas vezes, para se ter uma conta aberta, tem taxas. Se for receber uma diferença de R$ 0,30 a R$ 0,40, fica, por conta dos encargos, para as agências bancárias. São os impostos pagos para se ter uma conta.

Minha querida amiga não consegue extrair mais que cinco quilos por dia, e afirma que o valor recebido é insuficiente para comprar todos os produtos básicos para a casa. “Arroz, açúcar, café, feijão. Não compensa nada não”, explica, com tristeza no olhar.

Está na hora de sacudir a poeira, fazer Dolores sorrir.

Vou até o carro e, de surpresa, chamo-a para ver o que se encontra no bagageiro.

Atrás de Mirian, os três filhos, curiosos e risonhos, saltitam para chegar primeiro.

Uma das imagens mais vivas e puras, registro  na memória quando Dolores e os três garotos brilharam os olhos ao constatarem o conteúdo dos presentes.

Mas tudo isso?!!!! Sô, não precisava de tanta coisa.. Isso é uma graça de Deus! , repica, falando emocionada,  ao colocar as mãos nos embrulhos espalhados na parte traseira do carro.

Ajudo-os a transportar a mercadoria até ao local onde a dona da casa chama de sala.

A cada sacola aberta, a satisfação da família realçada em risos espontâneos. E uma incontida vontade de chorar me domina, diante de cena verdadeiramente de felicidade dos quatro.

Ao checar cada produto, disponibilizá-los numa mesa próxima, Dolores se volta, cabeça baixa e me abraça. Aperto-a demoradamente, de olhos fechados, ouvindo  soluço quase imperceptível  do choro dela.

Ao lado, os três meninos observam, com olhos de satisfação. Muita emoção.

Voltamos a sentar num banco improvisado no  terreiro e continuamos a conversar, agora em estado de descontração.

Mirian sabe que gosto de ouvi-la cantar coco, as cantigas das quebradeiras imortalizadas ao longo dos anos.

Sem que eu fale nada, depois de umas prosas, sua voz começa a dominar o ambiente silencioso da roça.

 

“Venho  mostrar a minha vida

Minha história

Meu olhar

As minhas mãos tão calejadas de trabalhar

De coco eu me sustento e trago ensinamentos.

Quebra o coco, quebrar…

Estendo as minhas mãos, pra Deus meu coração.

Eu quebro coco e também sei cantar…”

 

E fica ali repetindo a mesma estrofe, com sua voz afinada, poeticamente ilustrada nos gestos que faz com as mãos, imitando o corte da machada, a batida no coco.

Esse é um dos cantos preferidos, cantados diariamente pelas  mulheres quebradeiras de coco

Em alguns lugares da vida camponesa, não adianta gritar:  a roça é o lugar de retinidos silêncios, isolamento geográfico e espiritual; onde quando as dores são pequenas, é possível suportá-las. Com o tempo elas passam. Mas, e quando as dores são grandes e não passam?

No espaço invisível de Dolores, não há tempo novo.  Simplesmente existe o tempo de sua própria solidão porque as companhias são distantes e, mesmo que conhecidas, são desfrutadas no plano do silencio.