Milton

Milton Nascimento rompeu no palco às 22h12, em meio ao refrão de “Bola de Meia, Bola de Gude”, cuja melodia estava, até então, a cargo do  saxofonista Widor Santiago, e o restante da maravilhosa banda que acompanha a turnê “50 anos de Travessia”

Como Bituca – apelido juvenil de Milton -, a música tem alma de moleque.

Carrega consigo imagens nostálgicas — de campinhos de areia àquela sensação que um dia tivemos de que o mais importante na vida era não jogar a bola para o lado do vizinho.

Passos arrastados, caminhando lentamente sobre o palco, Milton entrou em cena depois de cinco minutos de introdução da bela canção.

 

Bola de meia, bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão

 

Óculos escuros para se proteger do efeito cortando das luzes que afetam sua visão, cada dia mais comprometida  pelo diabetes que lhe persegue  há vários anos.

Ao alcance das mãos, numa pequena mesa estrategicamente colocada para facilitar seus gestos, dois  copos de guaraná diet  e outro de isotônico, para repor sais minerais e carboidratos.

 

Contemplar  Milton no palco com seus cabelos inconfundíveis, fez o tempo voltar mais que depressa.

A voz marcante, ao soltar-se na imensidão dos ares que vinham do Tocantins, trouxe o Clube da Esquina ao presente, sem a presença de  Wagner Tiso, Lô Borges, Beto Guedes, Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Flávio Venturini,  Tavinho Moura e Toninho Horta, entre outros agregados, cocriadores do movimento musical surgido nas Minas Gerais e que revolucionou  o cancioneiro nacional.

O grupo e Milton fazem parte de uma coisa só, por isso, a cobrança de suas presenças, se pudessem ali estar.

Mas, convenhamos, seria pedir demais.

O que a programação do XVII Fecam nos proporcionou na gostosa noite de domingo, valeu por tudo.

Valeu pelo longo tempo de não ver Milton, valeu pelo eco de sua inconfundível voz, que um dia levou Elis Regina a declarar que se Deus tivesse voz, seria a de Milton.

Não cabe, claro, discutir aqui se Elis estava ou não, certa.

Talvez coubesse ao próprio artista perguntar-se que voz ou que Deus seria ele, como forma de  fecundar, religiosamente,  nossa idolatria  -, não apenas de nós  brasileiros, mas fãs e críticos do mundo todo.

O potencial do show de domingo, pelo menos pra mim, era arrasador.

De todos os meus  ídolos ainda vivos por aí – e não são muitos -, Milton era o único cujo qual ainda não havia presenciado em palco, ao vivo.

Inacreditável, mas verdadeiro.

E fui vê-lo, exatamente à beira do Tocantins, nas proximidades da casa onde nasci, um pouquinho mais abaixo onde está o palco montado

Neste ano de 2013,  Bituca assopra 120 velinhas: 70 de vida, 50 de carreira.

Mais que isso:  era a oportunidade para o município ganhar uma apresentação consagrada mundialmente, respeitada pelos maiores críticos de música, unanimidade nos palcos universais.

O show de Milton, representava  a oportunidade de se reafirmar a certeza de que o projeto cultural desenvolvido pela atual administração pública, sob a batuta do incansável secretário Cláudio Feitosa, é o caminho que temos para se construir um futuro melhor, absorvendo não apenas conhecimentos, mas um jeito diferente de olhar a confecção  dos eventos ditos culturais.

Se o que estava em cima do palco, lá na orla do Tocantins, verdadeiramente não era o Clube da Esquina,  posso afirmar  sem medo de errar: era um clubinho  da maior intensidade.

Quem sabe, um aperitivo póstumo daquele que, nos anos 60/70, foi um dos movimentos mais sinceros, ricos e despretensiosos da música brasileira.

Talvez por isso, o entrelaçar de expectativas entre os que estavam na plateia, formada, tenho certeza, quase em sua totalidade, por fãs do mais mineiro dos cariocas.

O público chegou a 5 mil, e isso não é exagero de entusiasta fã de Nascimento.

Fácil comprovar.

A secretaria de Cultura disponibilizou na praça, entre mesas e cadeiras espalhadas, lugares pra 3 mil pessoas.

Todas as mesas,  e cadeiras avulsas, foram ocupadas.

Afora esses dados, some-se o público que estava de pé, no entorno do palco.

Quando Milton começou a cantar “Clube de Esquina 2”, não coube em mim  de emoção -, ao lado de Sonia que veio exclusivamente para ver seu ídolo.

Ali estava um dos pedaços de mim.

E eu e ela, cantamos juntos, emocionados, um dos cantos que embalaram nossa juventude, pelas noites quentes de Belém.

 

Porque se chamava homem
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
Em meio a tantos gases
lacrimogêneos
Ficam calmos, calmos, calmos

 

Com água na boca, e o coração pulsando forte, queríamos mais.

Será que ele vai cantar “Um girassol da cor do seu cabelo”?, perguntou, aflita, Soninha, ligada na figura singela de Milton no palco.

Não, dessa vez nosso ídolo não a incluiu no repertório.

Nem “Cais”, uma das marcas do Clube de Esquina.

 

“Para quem quer se soltar / Invento o cais / Invento mais que a solidão de me dá…..”

 

Durante algumas vezes, entregaram o violão a Bituca. Numa delas para interpretar “Fé cega, faca amolada.

Deu para perceber que Milton ainda está desenvolto com o instrumento -, excessivamente agudo, quase metálico –, mas é visível uma certa limitação também nos movimentos das mãos.

É a doença filho-da-puta travando a mobilidade de seus braços.

Antes de “Lilia”, faixa instrumental do disco Clube da Esquina (1972), avisou: – “Essa música eu fiz para minha mãe”.

Ao meu lado, notei alguém reclamando da falta de letra da canção, como dito anteriormente, uma peça instrumental.

E, também, porque há uma justificativa para isso.

O próprio Milton, muitos anos atrás, ao explicar a origem da Lilia, disse que ela não tem letra porque mesmo todos os versos e livros do mundo não seriam capazes de descrever o significado fraternal de sua genitora.

Se no álbum a música soa leve e suingada, ao vivo ganhou um peso tamanho que a deixou fragmentada.

Durante sua execução, todos os instrumentistas tiveram seus momentos, com solos maquinados e não muito espontâneos Mas, por si, já bastaram como peça maravilhosa, barbarizada nas mãos de notáveis músicos.

Milton Nascimento se dirigia a cada um dos comparsas — Wilson  Lopes (guitarras), Gastão Villeroy (baixo), Lincoln Cheib (bateria), Kiko Continentino (teclados) e Widor Santiago ( sax) e ficava de costas para a plateia.

Mas cada movimentação no palco era uma verdadeira travessia.

Milton Nascimento quase não levanta os pés para caminhar. Os arrasta em passos mínimos e essenciais, como uma gueixa que caminha cuidadosa em direção a seu homem.

No palco da orla do Tocantins, “O Sol”, hit da também mineira Jota Quest, foi a surpresa do repertório.

A inesperada execução da música consagrada por Rogério Flausino  demonstra o interesse eterno de Milton Nascimento, que não se enclausurou em sua obra; e a unidade (não arrogante) da música mineira, importante para o prevalecimento de algumas bandas e artistas do estado em um cenário mais amplo, nacional.

 

Ei dor…eu não te escuto mais,
Você, não me leva a nada.
Ei medo…eu não te escuto mais,
Você, não me leva a nada.
E se quiser saber pra onde eu vou,
Pra onde tenha sol, é pra lá que eu vou

 

A plateia presente a orla, ( lindo!) demonstrou conhecer a obra de Milton, queria cantar Milton,  ouvir Milton.

E cantou, quando ele fez  “Encontros e Despedidas” e “Coração de Estudante”, dois de seus grandes sucessos.

O homem negro de 70 anos ainda tem um timbre encantador, daqueles que faz o rapaz ao seu lado dizer “nossa!”.

Mas hoje ele canta sem riscos. Controla sua voz cerebralmente, como quem opera um caixa eletrônico.

Em determinado momento, quando já tinha saído e voltou para cantar mais três canções, Milton sentou-se e disse bem-humorado, que o sucesso de “Canção da América” hoje tem a ver com quase tudo na vida das pessoas:  amizade, saudade…

Então, propôs que a própria plateia interpretasse a música, em sua homenagem.

E assim foi.

As vozes femininas predominavam.

Por um momento, no meio da canção, a sensação era de que Milton iria desistir da ideia. Mas o público foi até o fim. Baixinho, mas foi

Com a marcante “Sei que nada será com antes”, encerrou o show.

A letra resume um pouco dos 50 anos de sua carreira vitoriosa.

 

“Eu já estou com um pé nessa estrada/ Qualquer dia a gente se vê/ Sei que nada será como antes, amanhã….”

Milton 3

Ao meu lado e de Sonia, dava para ouvir, durante todo o show, a curiosidade das pessoas em relação ao estado físico de Milton.

Parece que ele tem alguma doença grave”, comentou uma senhora sentada logo atrás.

Para esclarecer.

Anos atrás,  o artista anunciou pela televisão que tinha diabetes. Consta que, na época, chegou a pesar 38 quilos. Quando apareceu na tevê, não tinha muito mais que isso.

Outras doenças foram cogitadas, embora esclarecimentos médicos tenham confirmado que a perda de peso é uma consequência possível do diabetes descompensado. Outra é a fraqueza crônica e a dor intensa em músculos das pernas e coxas.

É esse, provavelmente, o quadro de Bituca.

Durante todo o show, eu ficava a imaginar como um artista da envergadura de Milton conseguiu  ao longo de 50 anos de carreira, absorver influencias universais, porque  sua obra carrega um pouco da bossa-nova,  jazz, música regional brasileira e latino-americana, mais as  influências de Beatles, Bob Dylan,  Mercedes Sosa, Violeta Parra, Pablo Milanes, Silvio Rodrigues e outros grandes.

O maior presente que podemos dar a esse grande artista brasileiro é refletir sobre suas canções e deliciar-se com seu canto.

Uma vez que se a sua voz não é de Deus, a Ele pode ser emprestada.

 

 

Não se apaga, não se cala essa voz
Não se esquece, permanece essa voz
Voando livre no espaço essa voz 
Eterno canto de esperança essa voz
Ela é humana e é divina essa voz
Nossa amiga não parou de cantar
Ela é a voz de todos nós 

Não se apaga, não se cala mulher 
O seu sorriso, o seu sonho, a fé
Sua coragem, sua enorme paixão
A vida inteira lapidando a canção
Canção de vida e amor vai ficar
Coma as pessoas que não param de ouvir
A sua voz
A voz que é a voz de todos nós

{O que foi feito amigo
De tudo que a gente sonhou?
O que foi feito da vida?
O que foi feito do amor?
Aquele verso menino
Que escrevi há tantos anos atrás}