Lourdes Barreto é a entrevistada de  (*) Ghyslaine Cunha,  sempre presente colaboradora a nos premiar com mais um trabalho de altíssima qualidade.

Lourdes, nas palavras de Ghys, ensina a importância da família, espalhando “generosidade, diversidade, direitos, cuidados, educação, gentileza”, e o ato de ser mãe.

Para quem não sabe, nossa entrevistada é coordenadora do Grupo de Prostitutas da Área Central (Gempac) ,  marcando com lutas históricas avanços na luta pelos direitos das mulheres prostitutas.

Lourdes simboliza conquistas marcantes das mulheres marginalizadas nos becos de Belém.

Mas, o que vale agora, é deixar a própria Ghyslaine contar aos leitores como foi sua experiência de entrevistar Barreto e o resultado maravilhoso do bate-papo.

 

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Lourdes Barreto, a nos redimir 

 

“Você pode nos salvar!

Você vai nos redimir!

Você dá pra qualquer um!

Bendita Geni!”

(Chico Buarque)

 

 

Principalmente os sentimentos, junto com legalização da profissão, DST, violência, religião, isso e muito mais em uma entrevista linda, arrepiante, que era pra ter sido publicada no dia 2 de junho, no “Puta Dei”, escrito assim mesmo – o trocadilho firmando a ação no Dia Mundial de Luta pelos Direitos das Prostitutas. O dia foi escolhido para marcar um importante momento da luta, quando em 1975, 150 prostitutas invadiram uma igreja católica em Lion, na França, protestando contra a enorme repressão, inclusive com prisões e mortes, que elas e seus filhos estavam sofrendo.

Por pura falta de tempo, não tinha conseguido editar a entrevista, até hoje. Como todo dia é dia de celebrar a vida, não poderia privar os leitores do blog dessa presença iluminada da Lourdes Barreto, a coordenadora e liderança histórica do Gempac, o Grupo de Prostitutas da Área Central, que há 23 anos faz a sociedade avançar, enfrentando preconceitos para firmar essa luta grandiosa pelos direitos das mulheres prostitutas.

“Aprendi a lidar com os dois lados da moeda” assim afirma a mulher que valente, carinhosa e ousada, sempre à frente do seu tempo e aberta para o novo, foi capaz de juntar as mulheres prostitutas, levantar sua autoestima e lutar, em meio a preconceitos e violências de toda ordem, por justiça e dignidade, sua fortaleza interna.

Mãe super responsável na criação dos quatro filhos e filhas, todos estudaram e todos os dez netos estudam, sendo que três já estão cursando a UFPA, Lourdes tem muito orgulho de sua família, os olhos brilham quando cita sua filha que está terminando a faculdade de Serviço Social, moça de valores humanos e visão social crítica, Leila, que fez uma bela participação especial nesta entrevista, e um filho policial que, conforme reforça a Lourdes, “em 25 anos de polícia nunca atirou em ninguém”.

Ao entrevistá-la, não me preocupei em vasculhar números, índices, tabelas. Quis escutar a mulher, mãe, profissional, sua visão e seus sentimentos. Minha maior atenção estava em perceber seus tons, gestos, olhares, feições, sempre muito expressivas. Por isso organizei a entrevista em blocos, mas sem uma relação direta pergunta e resposta. Tentei deixar livres e soltas, embora conectadas, as palavras da Lourdes.

Banner do Gempac

 

A fala e a vida da Lourdes ensinam sobre generosidade, diversidade, direitos, cuidados, educação, gentileza, família e ser mãe que, para ela, sempre foi o maior sonho. “A família é a base de tudo”, assegura.

Gratidão, por seu tempo, pela entrevista, a Lourdes Barreto, a sua filha, Leila, e a todas as mulheres do Gempac que levam essa incansável e honrosa luta!

Deliciem-se. Lourdes Barreto, essa vida em defesa da vida, tecida com cuidado e amor, baseada sempre na verdade e na coragem. Ela, por ela mesma.

 

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A PROFISSÃO – perguntei a Lourdes sobre as lutas atuais da categoria, a afirmação recorrente de que a prostituição é um trabalho como outro qualquer e pedi o relato de algumas situações interessantes em sua lembrança, enquanto profissional.

 

Resposta de Lourdes Barreto: “A prostituição é classificada no Ministério do Trabalho como ocupação e a nossa maior luta, hoje, é pela legalização da prostituição como profissão. É um trabalho como outro qualquer, é a profissão mais antiga do mundo.

A prostituta é uma educadora que atua na iniciação sexual. Nós mexemos com essa coisa linda do sexo. O sexo é sagrado, é maravilhoso. Nós temos a consciência disso… os desejos, as necessidades, as fantasias, tudo isso é a vida também. Se um homem é rejeitado pelos preconceitos sociais, como um deficiente físico, nós deitamos com ele.”

“A prostituição organizada nas boates, nas esquinas, nas ruas, no porto, hoje é mais visível. As garotas de programa estão mais expostas aos riscos, porque a maioria delas não assume a profissão e, por isso, temos mais dificuldade também em proteger. A prostituição masculina sempre existiu e também a dos homossexuais, travestis… tentamos atuar para proteger, da mesma forma. Somos muito unidos e unidas nas lutas.”

“Há muitos casos de casamentos entre clientes e prostitutas, mas há também muitos casos de violência doméstica quando o marido é preconceituoso e cobra da mulher ter sido prostituta ou não aceita que ela continue na profissão. Há maridos que são sustentados por elas na prostituição, mas batem, cobram. Isso denunciamos, não aceitamos.”

“Quando estava atuando, sempre fui muito amiga dos meus clientes. Aconselhava os maridos a voltarem para suas famílias. Nem sempre os homens vinham só por sexo. Muitas vezes vinham para conversar, desabafar e se acalmavam. Uma vez convenci um homem a não matar sua esposa. Ele abusava dela, ela recusava. Ele a xingava e estava ficando cada vez mais enraivecido contra ela, me disse que ia matá-la. Conversei a noite toda com ele explicando o lado dela, como mulher. Falei que ele tinha que ser mais carinhoso. No dia seguinte, ele veio me agradecer. Tinha se entendido com a esposa.”

“Um homem, quando não queria pagar, naquela época, a gente se juntava e batia nele. Ele tinha que honrar a palavra e respeitar nosso trabalho, tinha que pagar pelo nosso trabalho, como em qualquer profissão.”

 

AS LUTAS – “Somos articuladas com vários movimentos. Lutamos contra a pedofilia, contra o tráfico de pessoas, contra a violência doméstica, contra todo tipo de violência sexual, contra o trabalho escravo, isso ainda existe sim na profissão, mas a melhor forma de combater é legalizar. Lutamos pela identidade, legalidade e condições de trabalho.

Lutamos também pela legalização do aborto e contra as drogas. Muitas mulheres ainda usam as drogas pra se manter acordadas durante a noite inteira, pra aguentar a jornada de trabalho.”

 

A VIOLÊNCIA – me interessava saber sobre os riscos, as verdades e os mitos quanto a violência no mundo da prostituição.

 

Resposta de Lourdes Barreto: “Sempre enfrentei a pior violência, a violência do preconceito e da hipocrisia social. Mas também há a violência policial, que diminuiu muito, a violência dos cafetões, mas há gente de bem no meio. Conheci muitos policiais dignos, honestos e também cafetões que protegem as mulheres. É sempre uma troca, como em qualquer profissão.

Há uma diminuição da violência policial e a organização do movimento foi fundamental pra isso. A prostituição é uma profissão de risco como qualquer outra. Rodoviários, policiais, bancários, todos estão expostos a insegurança e a violência.”

“Mulher que tá na prostituição e rouba não é prostituta, é ladra. E em qualquer profissão há gente digna e gente indigna.”

“Fui injustamente presa várias vezes, sempre por preconceito. Só uma vez fui fisicamente violentada, quando fui sozinha tentar soltar uma colega e um policial me empurrou. Aí aprendi o valor de agir no coletivo, a força de um grupo. Nunca mais fiz nada sozinha, tudo junto.”

 

Lourdes encantada com o livreto de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

 

 

PROTEÇÃO À SAÚDE – perguntei sobre a proteção às DST, inclusive a AIDS.

 

Resposta de Lourdes Barreto: “Nós, prostitutas do Brasil e do mundo, somos referência na luta por saúde e pela proteção às DST – doenças sexualmente transmissíveis. Eu estou entre as 100 primeiras pessoas no Brasil a lutar contra a AIDS, nos anos 80.

A nossa luta por saúde e proteção é cada vez maior e tem sido vitoriosa. As prostitutas estão cada vez mais conscientes e as DST estão diminuindo entre nós. Nós aprendemos e ensinamos estratégias até para colocar camisinha com a boca nos homens mais resistentes. 

Houve casos de prostitutas que sempre se protegeram na profissão e quando casaram, e saíram, pegaram DST do marido, em casa.”

 

A LOURDES – perguntei a ela sobre seus sentimentos, história, sonhos, desejos, crenças e sobre as eleições municipais próximas.

 

Resposta de Lourdes Barreto:  “Saí de casa muito jovem, com 15 anos. Sofri violência sexual na família, dentro de casa, e a prostituição foi um apoio para mim, uma escola, que cursei sempre com muita dignidade.

Na prostituição identifiquei minha sexualidade, aprendi a ser mulher, aprendi a ver que a sociedade tem muitos problemas e as coisas não são todas certinhas e eu não era a errada da história. Eu nunca me vi fazendo uma coisa errada. Sai pra trabalhar, pagar minhas contas, cuidar da minha vida com o que eu tinha. Aprendi a lidar com os dois lados da moeda.

Meu maior sonho era a maternidade. E eu assumi a maternidade sozinha, lutando contra a violência, contra os estigmas. Como mãe, sou carinhosa, preocupada e muitas vezes conservadora. Sempre fui muito atenta e sempre disse a verdade para meus filhos. A coisa que mais ensinei a eles foi ter caráter. A família é a base de tudo.

Sou avó de dez netos. Três netos estão na UFPA, uma filha cursando o último ano na faculdade e um filho policial, rapaz digno, que em 25 anos de polícia e nunca matou ninguém.”

 

LEILA, filha de Lourdes, nesse momento da conversa, dá um belo depoimento – “Só compreendi que havia problemas na profissão da mamãe por causa da sociedade e nunca por causa dela, que sempre foi ótima mãe. Às vezes até repressora, conservadora, muito cuidadosa. Mamãe sempre foi de lembrar aniversários, estudar junto, levar e buscar na escola, participar de reuniões de pais e mestres, mesmo sem compreender, porque era analfabeta, mas sempre foi muito presente e cobrava os estudos, como qualquer boa mãe.

 

Se houve sofrimento na minha infância, foi por causa do preconceito da sociedade. Lembro de uma vez que uma senhora que conhecia e convivia com nossa família comentou que minha letra era muito bonita mesmo sendo eu quem era, e eu me perguntava, mas quem eu sou? Eu me sentia uma menina normal, até que, muito cedo, fui percebendo o preconceito com a profissão da minha mãe. 

 

Mamãe sempre foi muito verdadeira, uma mulher maravilhosa, um exemplo de caráter e dignidade pra nós.”

 

Lourdes Barreto: “Me apaixonei muitas vezes, até pouco tempo, sonhava um dia casar de véu e grinalda. Sim, a gente se apaixona, sim. Os homens que mais encantam são os homens carinhosos, respeitadores, que consideram a gente como gente.

Meus clientes até hoje tem muito carinho por mim e eu por eles. Quando nos encontramos perguntamos como vai a vida… são executivos, operários, políticos… há uns velhinhos que passam aqui e jogam beijo.”

“Acho que a gente tem que se apegar a alguma coisa. Fui à novena de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e me senti muito bem. Posso ir a qualquer lugar, sempre, com muito respeito. Tenho muita fé em Deus, em Nossa Senhora e em Jesus Cristo. Essa fé sempre me deu muita força na vida!”

 

Leila e Lourdes, filha e mãe.

 

 

ELEIÇÕES 2012 – “Nas próximas eleições, quero um prefeito e vereadores e vereadoras que melhorem a vida de toda a sociedade, claro, mas nós sabemos da nossa realidade. 

Queremos, por exemplo, alguns serviços públicos como o de saúde, que funcionem durante a noite, quando estamos trabalhando, aliás, aqui na área central, no bairro da Campina, não há um único posto de saúde. Queremos ações para o aumento do nível de escolaridade e alfabetização das prostitutas, ainda é muito baixo o nível de escolaridade entre nós. Queremos mais segurança nas áreas de prostituição; municipalização do Dia da Prostituta e campanhas de combate ao preconceito. Queremos creches, mas não que atendam apenas aos filhos das prostitutas, queremos que misturem e incluam a todas as crianças, sem preconceito.”

 

“Ah, eu quero uma cidade – e uma vida – mais justa, mais digna e mais feliz pra todo mundo, onde o amor prevaleça.”

 

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(*) – Ghyslaine Cunha (como ela mesmo se apresenta) é mãe de Cecília, eterna estudante das ciências sociais e políticas, vegetariana e esotérica, apaixonada por poesia, crônica e boa música, editora do blog http://amoresmeusvidaminha.zip.net . Também presta assessoria política e em planejamento e gestão a associações e sindicatos de trabalhadores, pequenas empresas, mandatos e outras organizações populares.