Em casa sempre prevaleceu a linguagem feminina.
Eu e Thiago, o primeiro dos três filhos que tive com Sônia, convivemos, silenciosos, ouvindo palavras essencialmente femininas.
Um mundo de mulheres, assim a nos cercar, predominou nos quadrantes detalhados do lar.
Sônia, Sílvia e Julianna.
A primeira, filha do meio.
Ju, a caçula, nascida sete anos depois de Silvinha.
Eu e Thiago, desde muito cedo, compartilhamos em cumplicidade a conversa das três ao nosso modo, convivendo num ambiente onde o papo saudável girava em torno de coisas & loisas do gênero oposto.
Absorventes. Calcinhas. Sutiãs. Enxaqueca. Postan.Camisolas. Celulite. Sapatos novos. Maquiagem. TPM. Hidratante. Esmalte. Máscara facial à noite – quase todas as noites.
Desde cedo, Sônia sempre usou cosméticos preventivos.
O ritual noturno, antes de deitar, era sagrado, diante do espelho.
Pelo menos uns cinco potes de cremes, hidratantes, produtos anti rugas ficavam abertos até ela completar o processo de aplicação, que começava no rosto e se estendia ao restante do corpo.
Inicialmente, apenas a mãe.
Quando Sílvia passou dos treze anos, aliou-se à mãe no ritual de embelezamento.
Mais tarde, as duas ganharam o reforço de Julianna – e eu, os cuidados com o bolso para não estourar o orçamento.
Ao longo de muitos anos, eu e Thiago, a tudo observávamos, respeitando o espaço de cada uma e o direito que tinham de tornar cada vez mais feminino o mundo no qual vivíamos.
Três meninas elegantes, que sempre se vestiram bem zelando pelo bom gosto herdado de Sônia.
Três mulheres vaidosas que tinham o cuidado de se cuidar ao excesso, para chegarem aos dias de hoje usufruindo os efeitos da dedicação que sempre tiveram com a pele e , modo geral, o corpo, propriamente dito.
Silvinha e Julianna puxaram para a mãe, a mais vaidosa das três.
Thiago, ao seu estilo calado de tudo observar sem emitir comentários, contemplava os movimentos das meninas compreendendo haver em cada gesto delas um jeito tranquilo de viver, a suavidade característica das irmã e da mãe.
Vez ou outra, ousava zoar:
– Pai, a Sílvia ´só quer ser´, me disse um dia, perto de seus dez anos, deitado à rede comigo, olhando a irmã do meio que se pintava em frente ao espelho.
No quarto do casal sempre havia uma rede atada, onde eu exercia minha adorável condição carinhosa de pai ninando cada um em meu colo, brincando ou contando estórias que invariavelmente varavam horas até dormi-los, enquanto a mãe se cuidava no repetitivo ritual, antes de deitar.
Quando a indústria de cosméticos lançou os sabonetes esfoliantes com a promessa do produto eliminar as células mortas e propiciar uma pele resplandecente, Silvinha amava usá-los – mas sempre ouvia da mãe a recomendação para não aplicá-lo diariamente. “Apenas duas vezes por semana, Sílvia”, lembrava a mãe.
Um dia, Thiago, deitado na rede comigo, deu o bote: – Pai, a Sílvia usa “aquele” sabonete todo dia..
Eu me divertia adoidado, inventava alguma coisa para lembrá-lo de que as meninas é quem deveriam se entender lá pelo banheiro.
Época de praia, no verão, quando nos preparávamos para passar o final de semana num barco (foto) e uma lancha que tínhamos em Marabá, a ladainha era conhecida:
– Ju, passa protetor solar.
– Sílvia, não pode ficar muito tempo sob o sol. Cuidado com a sua pele branca demais, além do protetor, pegar sol somente até às 10 horas…
Era Sônia com suas saudáveis recomendações.
O multicolorido feminino ditado pelos hábitos de Sonia, Silvinha e Julianna, quando foi levado ao campo de futebol, priorizou o vermelho e preto do Flamengo. Influenciadas por mim e pelo amor rubro-negro louco de Thiago, as duas filhas cresceram amando as cores do Mais-Querido.
Nas tardes de domingo de futebol, Sonia, que já vinha de outras influências, tipo samba sincopado, assumia o isolamento de torcedora vascaína: a linguagem das duas meninas era afinada com o batuque dos dois homens em diapasão: uma vez Flamengo, sempre Flamengo.
A mãe sempre firmou uma relação amistosa e transparente com as duas filhas. Nunca foi de sentar-se para tricotear a esmo, até porque Sílvia não é de muitas confidências – ao contrário de Ju, mais aberta, e jogada pras conversas de múltiplas linguagens -, mas na hora de ficar fuça à fuça, o papo rolava direto entre mãe e filhas.
Quando Silvinha menstruou a primeira vez, aos doze anos, a notícia chegou pelo telefone.
Do outro lado da linha, Sonia me alcançou no trabalho, ansiosa para comunicar o fato.
– A Sílvia acabou de menstruar. Ela ficou um pouco nervosa, eu também, mas já está tudo sob controle.
Ou seja, quando veio a primeira menstruação, as duas pré-adolescentes já sabiam qual era o papel biológico em mutação nos seus corpos.
As três meninas jamais tiveram a necessidade de um dia ser levadas a uma psicóloga ou terapeuta. Essas duas profissões não existiriam – se dependesse do tipo de vida doméstica vivida pelas nossas três mulheres.
Nós mesmos éramos os psicólogos, cada qual ao seu modo, brincando, zoando, sem maiores grilos.
Divã para as três, somente os sofás diversos que sempre tivemos nas duas salas imensas da casa de Marabá.
Até hoje, as três morando agora em Belém, quando se fala em terapia de grupo, eu já sei que o trio está indo para o shopping com amigas.
Ao longo dos anos, a linguagem feminina de casa ganhou simbologias e entendimento próprios.
Quando Julianna chegava faceira me abraçando, completando o gesto com a pergunta “Pai, você me ama?”, de imediato começava a preparar o bolso porque o pedido inevitável vinha em seguida. E se à pergunta ela acrescentasse outra do tipo “o quanto você me ama?”, perigava o presente que ele iria pedir ser dos mais caros.
Thiago também sacava bem esse babado.
Diante dos mimos de Julianna ensaiando paparicos, quase sempre ele vinha me socorrer: – “Pai, essa menina tá querendo pedir alguma coisa…”
Silvinha também tinha suas mensagens cifradas que as usava quando alguma bronca dela do colégio estava prestes a chegar ao conhecimento da mãe. O porto seguro, naquelas horas, era o colo de quem?
Do gente fina aqui mesmo!
Os papos em baixo volume giravam depois do almoço ou à noite, quando eu costumava contar estorinhas inventadas na hora para dormi-los.
– Você me ama mesmo, não é?
Pronto! Bastava ela fazer essa pergunta que eu já sabia haver alguma demanda doméstica necessitando urgentemente de solução.
Cochichando ao ouvido, ela se revelava.
E contava a bronca bem baixinho para Thiago não ouvir.
Daí em diante, eu me transformava no chanceler familiar em missão diplomática, quase sempre bem sucedida, junto a Sônia.
Quando a bronca, na visão da mãe, exigia solução punitiva, difícil era retornar sem uma boa notícia para dar à filha, que se encontrava em seu quarto, aflita, esperando armistício. Eu sofria junto com ela.
Na educação dos filhos, prezamos, eu e Sônia, um tipo de compreensão tácita que não nos permitia quebrar decisões anteriormente assumidas diante de um deles. O caráter educativo tinha sempre de prevalecer.
Nessas lembranças aqui resgatadas do mundo feminino que sempre predominou às minhas vivências e de Thiago, recordo-me de um lance que retrata fielmente a plenitude dos hábitos de Sônia, Silvia e Julianna.
Uma noite qualquer, ensaiamos ir à casa de um de nossos familiares. Inicialmente, as três meninas rejeitaram a proposta, preferindo ficar em casa. Eu e Thiago decidimos ir sem elas.
Quando já estávamos de saída, o trio anunciou haver mudado de ideia, topando nos acompanhar – e pedindo para que nós dois esperássemos elas trocar de roupa.
– Estaremos prontas em um minuto!, disse Sílvia.
Sabendo que aquele tempo de um minuto duraria o tempo de uma partida de futebol, Thiago tirou os sapatos, a camisa e deitou no sofá.
Plinio Pinheiro Neto
2 de abril de 2012 - 10:13Caro amigo Hiroshy.
Conhecendo o romantismo de tua alma de poeta, endurecida, algumas vezes, pelos embates da vida, porém jamais vencida e sempre ressurgindo com revelações mais belas, sei que este escrito saiu de tuas entranhas, do amor belo e forte que une a tua familia e que eu, pude acompanhar bem de perto por algum tempo.Hoje, os afazeres da labuta pelo sustento diário nos impedem de convivermos mais, porém sempre lembro com saudade dos tempos de tua amizade com meus irmãos mais novos e de como voces sabiam aproveitar a vida de maneira alegre e sadia.Mais tarde, bem mais velho, ainda pude jogar ao lado do ponteiro direito hábil e moleque, que adorava atazanar a vida dos zagueiros.Tudo faz parte de um tempo que já se foi, mas que permanece vivo dentro de nós.Parabens pelo belo texto! Vejo-me nele, pois se já tinha a Neyde, a Gabriella e a Carol a me cercarem de cuidados, agora tenho a Clarinha, que na inocencia de seus três anos, sempre me pergunta: “o que voce está fazendo?” e “para onde voce vai?” São quatro a me monitorar e a me amar, da maneira que só as mulheres sabem amar.Continua a cultivar o amor em tua familia e esse amor haverá um dia de transbordar e abençoar a muitos.
Um grande abraço.
O amigo
Plinio Pinheiro Neto
As tuas meninas embalam tua vida, Plínio. Conheço-as, e sei o quanto te amam. Obrigado mais uma vez pela sua presença aqui na caixa de comentários. Abs
Zelia Marques
2 de abril de 2012 - 00:17Olá Hiroshi!
Obrigada por compartilhar suas memórias conosco. Ao ler o texto relacionei-o com espaço que vc tem dedicado as mulheres nessse blog e fico supondo o quanto o “giro nesse mundo feminino” que descreveste no texto influenciam a sua ação como jornalista.
Acompanho seu trabalho sempre que possível e cada vez mais admiro sua poesia cotidiana, que leva a gente a revirar as próprias memórias…
Mais uma vez OBRIGADA!
Obrigado você, Zélia. O blog é qualificado com sua presença aqui. Abs
LILIANE
1 de abril de 2012 - 23:00Não é à toa que minha amiga Sílvia se tornou uma mulher linda! Tanto por dentro como por fora.
Linda mesmo, né, Liliane?!
Juliana
1 de abril de 2012 - 22:15Tudo perfeitamente detalhado. Saudades de tudo isso pai. Beijos
Minha “negona” linda, ainda vou contar muitas outras estórias e histórias. Um beijo em você, Ju, com saudades.
Maria Raquel Soares Ferreira
1 de abril de 2012 - 20:54Hiroshi meu amigo, sou suspeita para falar de suas três mulheres, sempre fui uma admiradora da Sonia e ela sabe muito bem disso. Por tabela, passei a gostar e também a admirar a Silvinha e a Juliana. Você e o Thiago foram agraciados por terem essas mulheres em suas vidas. Seu relato retratando a vida de vocês me emocionou muito. Fico feliz em ver sua família bem encaminhada.Um grande abraço e mais uma vez parabéns por tudo e que DEUS continue abençoando sua família.
Obrigado, Raquel. Abs, querida.
Anônimo
1 de abril de 2012 - 20:40Família.. família é tudo igual e sempre diferente!
Saudade de minha gente que vivia cenas como a “sua” gente… bons tempos do interior da casa.
Sônia
1 de abril de 2012 - 19:51Fomos pais muito jovens, eu com 20 anos você com 23, mas demos uma boa educação aos nossos filhos, com bastante equilibro. Hoje vemos o resultado com muito orgulho, são três filhos maravilhosos. A vaidade é bacana, a mulher tem que ter um pouco, isso eu sempre ensinei as meninas, e elas aprenderam bem, e você soube administrar muito bem. Acho que tudo valeu.
P.S. Você esqueceu que a Julianna só usava batom vermelho, não tomava nem água pra não sair o batom.
Beijos
Sônia
Verdade, Sonia. Não lembrava desse fato. A Juju curtia demais o batom vermelho, sem tomar água para não “borrar” a boca. Rsrsrsr. Bjus
Jonatas Ramos ...
1 de abril de 2012 - 19:03Faltou só a foto da grande família Caríssimo Bogéa … Belo texto …