O contêiner balançava enquanto a grua o deslocava para o navio. Como se estivesse flutuando sozinho no ar, o sprider, gancho que o prendia à grua, não conseguia domar os movimentos. Suas portas mal fechadas se abriram bruscamente e dezenas de corpos começaram a cair. Pareciam manequins. Mas no chão as cabeças rachavam como se fossem crânios verdadeiros. E eram crânios. Saiam do contêiner homens e mulheres. Também alguns rapazes. Mortos. Congelados, todos juntos, uns sobre os outros. Em fila, apertados como sardinhas em lata. Eram os chineses que nunca morrem. Os eternos cujos documentos são passados de um para outro. Eis onde iam parar. Os corpos, que a imaginação mais fantasiosa acreditava cozinhados nos restaurantes, enterrados nas hortas do entorno das fábricas, jogados na boca do Vesúvio. Estavam ali. Caíam às dezenas do contêiner, com o nome escrito num crachá pendurado num cordão.



Parágrafo acima foi extraído de Gamorra , extraordinário livro, transformado em filme, escrito pelo jovem jornalista italiano de 30 anos, Roberto Saviano. Ele conseguiu, disfarçadamente, se embrenhar no mundo da Camorra, máfia italiana que age em Nápoles, desvendando suas ramificações pelo planeta, inclusive nos negócios da moda italianos.



Com um texto límpido, moderno e claro, Saviano impressiona em tudo.



A imagem de cadáveres caindo de contêineres, foi flagrada por ele, em suas incursões pelo porto de Nápoles, por onde passam todos os negócios do crime organizado. Diz ele:



O porto de Nápoles é uma ferida. Grande. Ponto final das viagens intermináveis das mercadorias. Os navios que chegam, atracam no golfo aproximando-se da doca como filhotes à procura de tetas, só que não são eles que mamam; ao contrário, são mamados. O porto de Nápoles é o buraco no mapa-múndi de onde sai o que se produz na China, no Extremo Oriente, como os jornalistas ainda se divertem em defini-lo. Extremo. Longíssimo. Quase inimaginável. Fechando-se os olhos para imaginá-lo, surgem quimonos, a barba de Marco Polo e um golpe de Bruce Lee. Na realidade, este Oriente está atrelado ao poto de Nápoles como a nenhum outro lugar. Aqui o Oriente não tem nada de extremo. Aliás, poderia ser chamado de vizinho Oriente, ou no mínimo Oriente. Tudo o que se produz na China é despejado aqui. Como um baldinho cheio d’água que, quando derramada dentro de um buraco de areia, o alarga ainda mais e o faz crescer também em profundidade.



Roberto Saviano vive escondido, ameaçado de morte pela Camorra.



Segundo o The New York Time, Saviano é “uma espécie de Salman Rushdie (escritor iraniano) italiano na luta infindável contra o crime organizado. O livro mais importante publicado na Itália em anos”.



E eu falei tudo isso, empolgado com a leitura que acabei de fazer do livro, porque quero pedir a vocês que o leiam, também. De um fôlego só, devorei as 350 páginas como se estivesse preso a algo que não podia soltar.



É emocionante conhecer esse mais novo talento da literatura mundial, que consegue escrever uma reportagem da realidade selvagem dos mafiosos italianos como se fosse a mais pura das ficções.