Depois que os anos 60 se foram, com sua exuberante provocação musical e comportamental, internacionalmente liderada pelo rock e no Brasil colorida pelos finos acordes da Bossa Nova, pelo frenesi ingênuo do iê-iê-iê e pelo sarapatel de idéias do Tropicalismo, pareceu que uma letargia mental se abateu sobre nossos tão imaginativos e corajoso músicos. Quando, no final da década de 70 iniciou-se a tal “distensão política” e a liberdade de expressão, em vez de nossa vida musical explodir em novos e surpreendentes projetos, caiu, ao contrário, num bolerento e embolorado cancioneirismo linear, comandado pelas Simones, Ro-Ros e Joanas da vida.

Neste domingo, coloquei um fita VHS antiga de programas antigos que eu costumava gravar e deparei com um debate, carregado de baixarias e fortes argumentos de um time de críticos entrevistados pelo “Roda Viva”. Um programa histórico conduzido ao calor da discussão de Tárik de Souza, Júlio Medaglia, Paulo Cotrim, e Mino Carta – à época diretor de Veja ( quando a revista era séria).

O grupo de críticos relembra toda uma trajetória dos criativos movimentos musicais do país, exaltando, principalmente, a Bossa Nova e o Iê-Iê-Iê liderado por Roberto Carlos.
Tempo da calça “calhambeque” boca de sino e os sonhos esvoaçantes num carrão vermelho loucamente dirigido por Eduardo Araújo.

Tarso de Castro bate forte em Medaglia porque este critica a crítica que não perdoa Chico Buarque, Caetano e o restante da seleção. Tarso parte para agressões pessoais, chamando Júlio de fascista (quem assistiu a este programa nunca deve ter esquecido).

O mais radical dos críticos da música brasileira reage dizendo que Tarso, “num afã de defender seus amiguinhos músicos, companheiros de porres e beijinhos na boca”, não entendeu seus argumentos.

O programa tem um curso de troca de impropérios, mas é gostoso. Discute-se o fluxo da MPB.

No início dos anos 70, o capixaba Sérgio Sampaio aparece dividindo com Raul Seixas, Miriam Batucada e Eddy Star o disco “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta: Sessão das Dez”. Logo estoura “Eu quero é botar meu bloco na rua”, onde ele aparece comprando briga, declaradamente em seus versos, com a ditadura militar.

Há quem diga que eu dormi de touca
Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga
Que eu caí do galho e que não vi saída
Que eu morri de medo quando o pau quebrou
Há quem diga que eu não sei de nada
Que eu não sou de nada e não peço desculpas
Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira
E que Durango Kid quase me pegou

Eu, por mim, queria isso e aquilo
Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso
É disso que eu preciso ou não é nada disso
Eu quero todo mundo nesse carnaval…

Eu quero é botar meu bloco na rua
Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua
Gingar, pra dar e vender

Lembro-me, claramente, dos áureos tempos daquela geração, lá pelo inicio de 70, quando não apenas a crítica, mas uma repressão violentíssima tentava amordaçar a forte expressão de seu trabalho e ninguém ia resmungar na televisão e muito menos pedir condescendência a críticos para que fossem um pouco mais serenos e atenciosos. Muito pelo contrário.

O pau correu solto no “Roda Viva”, em atos de violência jamais imaginados pelo bom e “inzoneiro” espírito da crítica nacional – e o compositor, com toda certeza, saía ainda mais fortalecido, criativo e corajoso. Nenhum cassetete, tortura ou tentativa de lavagem cerebral que se processava através dos meios de comunicação conseguiu interromper ou inibir a atividade e a avalancha de participação social, política e cultural promovida pelos artistas da época e que tinha na musica brasileira o seu carro-chefe.

Não sou saudosista, e nem quero encontrar “razões” fora da própria atividade intelectual ou composicional ou ficar culpando instituições quem quer seja, pelo baixíssimo saldo criativo de nossa musica neste inicio de século.

Cozinhando em seu caldeirão João Gilberto, Luiz Gonzaga, choro, afoxé, e toda a parafernália elétrica de Dodô a Jimmy Hendrix, os Novos Baianos quando surgiram, soltando fumaça direto do sítio onde moravam em Jacarepaguá, fez-se revolução nos braços do violão e nos dedos de quem amava tocar com elegância e suavidade.

Os versos era o que se queria cantar,

Estava ali um pouco de tudo, com a ginga baiana padronizada no talento de Moraes Moreira, Galvão, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo, entre outros.

Exatamente quando meu filho Thiago nasceu, o grupo compôs “Quando você chegar”.

Quando você chegar, é mesmo que eu estar vendo você.
Sempre brincando de velho, me chamando de Pedro,
Me querendo menino que viu de relance.
Talvez um sorriso em homenagem à Pedro.
Pedro do mundo dum bom dum bom dum bom…
Fique quieto que tudo sana.
Que a língua portuguesa, a língua da luz.
A lusitana fez de você o primeiro guri.

Meu guri, meu gurizinho.
Água mole em pedra dura,
Pedra pedra até que Pedro.

Chico deixou de compor. Caetano se limita a regravar antigas canções. Gil, nosso ministro, também parou.

Novos talentosos compositores, seguem o eixo imposto pelo mercado, fugindo de suas capacidades de produzir algo melhor.

Esse papo de que a televisão é um veículo insensível à boa musica também é furado. Toda essa geração de músicos que fizeram nossa cabeça, atuando mesmo que raramente ainda hoje, foi fruto exclusivo da televisão. O período áureo de seus trabalhos se deu nos grandes festivais da TV Record de São Paulo nos anos 60. E no momento mais polemico e vibrante da musica no período, quando Caetano heroicamente tentava defender suas idéias numa nação em fúria contra ele (quem não se recorda disso?), uma única instituição esteve ao seu lado: a Globo de São Paulo. À revelia de todos, ela colocava no ar inúmeras vezes aquele seu desesperado e lúcido discurso de “É proibido proibir”.

O certo é que está faltando coisa boa na MPB.

Temos lampejos de compositores inteligentes mas que se conformam com o sucesso fácil.
Ninguém pode negar o talento de Chico César, Zeca Baleiro, Lenine, Jorge Vercilo, Djavan, Marcos Sacramento, entre outros. Mas dá saudades dos tempos bons de Walter Franco, Raul Seixas, Belchior, Ari do Cavaco -, influenciados pelos mestres dos anos 60.

Ainda hoje, quando escuto Sá Marina, na gostosa voz de Simonal, o tempo volta, a saudade aperta.

E lembro de amores que tantas encrencas causaram ao meu coração.