Oportuno artigo de Carlos Lessa, publicado no Valor Econômico:
Belo Monte e o diabo
O Brasil dispõe de três grandes bacias hidrográficas, cada uma regida por um calendário pluviométrico e regime climático próprio e diferenciado. Isto permitiu ao Brasil instalar a geração hidráulica como fonte prioritária de eletricidade e desenvolver um sistema integrado de usinas de geração e linhas de transmissão que possibilitou ao Brasil uma energia limpa, renovável e barata. O esquartejamento da privatização levou o país a uma situação que combina energia elétrica barata para as atividades eletrointensivas (como a produção de alumínio, cimento, papel e celulose) com energia extremamente cara para uso residencial, iluminação pública e empresas não eletrointensivas.
Pelo sistema “de mercado” instalado, o consumidor brasileiro é sangrado pelo custo de energia elétrica e “subsidia” as exportações de alumínio, aço, celulose de fibra curta, ferro-silício, ferro-manganês, entre outros. As cidades brasileiras estão subabastecidas para iluminação pública, o que tem graves consequências sobre a qualidade da vida urbana. A lucratividade das concessionárias, predominantemente estrangeiras, que adquiriram as empresas privatizadas – pagando em parte com moedas podres e financiadas com créditos de banco públicos, é hoje recordista em lucratividade sobre patrimônio (superior a 20% a.a., na maioria das empresas). Os lucros anuais das elétricas (acompanhadas pela CVM) cresceram durante os oito anos do governo Lula em 230%. O investimento produtivo das elétricas, ao contrário do proclamado pelos privatizantes, foi reduzido e insuficiente. As distribuidoras de energia, nas grandes cidades, em sua maioria cortaram e comprimiram os gastos de operação e manutenção. Qualquer carioca ou paulista sabe a frequência das interrupções e oscilações de carga. Em resumo, com o sistema estatal, o Brasil construiu a melhor matriz energética renovável do planeta. Com a privatização, esta renovabilidade está sendo corroída, pois a crise de suprimento energético estimulou a instalação da termeletricidade, que consome gás, óleo, combustível e outros itens não renováveis. A termeletricidade tem custos muito elevados, é altamente poluidora, mas é implantada com relativa rapidez. Essa “solução” foi implantada devido à atrofia do investimento público em hidreletricidade e “timidez” das empresas privadas.
Qualquer matriz energética deve ter termelétricas para cobrir situações ocasionais de escassez e/ou dominar a tecnologia de operação de eletricidade termonuclear. Entretanto, é uma estupidez que um país com amplo potencial hidrelétrico não lhe confira prioridade a partir de um planejamento eficiente para instalar novas usinas hidrelétricas. A pressa em privatizar, no governo FHC, não apenas desmantelou o setor elétrico estatal, como também implodiu o sistema de planejamento e
financiamento do setor energético. Utilizou consultoria britânica, ou seja, de um país que não dispõe de significativa hidreletricidade. Acatou, em nome da “competição”, o esquartejamento do sistema elétrico brasileiro. O governo Lula herdou uma situação caótica, cujo marco foi o grande apagão do final de FHC. Foi capaz de reduzir algumas dimensões da herança maldita, porém foi tímido em relação à restauração da presença estatal.
No atual sistema “de mercado”, as hidrelétricas estatais não se apropriam da enorme lucratividade potencial de suas usinas. São obrigadas a vender lotes que darão sustentabilidade às atividades eletrointensivas e exportadoras e à espetacular
lucratividade das empresas privadas, notadamente das distribuidoras. Segundo Campos Ferreira, em “O sistema elétrico brasileiro” (Economia e Energia, n.3, 2002), o custo de geração hidrelétrica no Brasil é de apenas US$ 4/MWh. Deveria prevalecer outro mix tarifário que beneficiasse o consumidor. Não é assim. Neste caso há uma perversa contribuição da termeletricidade. Com custos de produção mais elevados, sua lucratividade depende de tarifas elevadas. Em um sistema esquartejado, o consumidor é penalizado, pois paga por toda e qualquer energia uma tarifa impulsionada pelos custos termelétricos.
Desde o fim do regime militar já havia a indicação de “domar” o Rio Xingu e iniciar o aproveitamento dessa sub-bacia da Região Amazônica (14% do potencial inventariado do Brasil estão no Xingu). Em Estudo Xingu, a Eletronorte identifica cinco
aproveitamentos, sendo o principal deles o de Belo Monte. Entre o escudo cristalino do Planalto Central e a Planície Amazônica, está o Cânion de Volta Grande, que faz uma curva (quase uma ferradura) com um desnível de 90 metros entre seu início e o final.
O fluxo turbinável de quase 14 mil m3/s permitiria instalar um aproveitamento com 11 mil MWh. A usina seria a 3ª maior hidrelétrica do planeta. Contudo, exigiria a remoção de cerca de 400 habitantes de uma ilha fluvial e a inundação de toda a área abrangida pela ferradura.
Há uma crescente oposição ambientalista à construção de novas grandes hidrelétricas na Região Amazônica. Os ambientalistas avaliaram externalidades negativas de Belo Monte. Apontam perdas na atividade pesqueira (na represa não haveria peixes?); perda na qualidade (?) da água; inundação de floresta remanescente e de propriedades rurais e emissão de CO2 e metano (CH4). Cabe perguntar aos ambientalistas por que não avaliam a emissão alternativa de dióxido de carbono a
partir da termeletricidade a ser alternativamente implantada. Os ambientalistas deploram os custos por evaporação da lâmina de água da represa (ao que eu saiba, toda água que evapora retorna sob a forma de chuva). Perdas por atividade turística (não há turismo para um grande reservatório?). Finalmente, aparece o argumento de perda de biodiversidade (até o presente, não avaliada).
É inquestionável que Belo Monte vai gerar progresso para a sub bacia do Xungu e criará empregos durante e após a construção. Porém o ambientalismo considera que o aumento populacional ocasionado pela presença da força operária e da mão de obra especializada durante a construção “provocará variações nos estilos de vida, hábitos e culturas”. É óbvia a preferência da população local pelos estilos de vida, hábitos e culturas de operários e profissionais com salários dignos, carteira assinada e consumidores de bens e serviços civilizados.
Para os ambientalistas radicais, o aumento do uso intensivo de energia (o brasileiro dispõe de uma reduzida energia por habitante) irá aumentar o consumo de bens e serviços demandantes de energia. O aumento da oferta irá “consumir recursos naturais como matéria prima e poluir o ambiente”. Para o ambientalista radical, a intervenção antrópica é sempre condenável; é contrário ao desenvolvimento social. Gosta do padrão neolítico e admira a “paz de cemitério”.
É incongruente o ambientalismo brasileiro ser contra a hidreletricidade na Bacia Amazônica e, ao mesmo tempo, ficar em silêncio com as exportações crescentes de carne vermelha e soja, que impelem o capim e a lavoura de grãos destruindo as florestas e sua biodiversidade. Ficam em silêncio com a expansão da termeletricidade. Não se mobilizam politicamente contra o Brasil optar por exportar eletricidade (incorporada ao alumínio, celulose, minério de ferro etc).
Tiveram força, entretanto, para mutilar o projeto de Belo Monte. Será uma usina a fio d ‘ água, que operará de forma reduzida durante os meses sem chuva do Brasil Central.
O governo – que festeja exportações eletrointensivas e se orgulha do Brasil virar um “celeiro mundial” – reduziu em 26 metros a barragem, que terá um reservatório 70% inferior ao possível. Aliás, as barragens do Rio Madeira também não terão eclusas e o Brasil abre mão de 4 mil quilômetros de hidrovias navegáveis. O transporte aquaviário é o de mais baixo custo logístico para o Brasil, porém o ambientalismo não faz a defesa das hidrovias reguladas por grandes aproveitamentos hidrelétricos e navegáveis a partir de eclusas. É impressionante o silêncio da versão domesticada do ambientalismo que se diz favorável ao desenvolvimento renovável. Nada é, no domínio energético, mais renovável que a hidreletricidade. O governo Lula merece parabéns por, finalmente, tocar Belo Monte. Porém, como se sabe, “o diabo mora nos detalhes” do projeto de uma usina a fio d ‘ água e sem eclusa. É uma pena que o governo Lula seja tímido. Lembro que a timidez é oriunda de medos, produtos favoritos do diabo.
* Carlos Lessa é doutor em economia, professor emérito e ex reitor da UFRJ e ex-presidente do BNDES.
Anonymous
18 de junho de 2010 - 14:30planejamento do setor estatal em energia antes das privatizações!!
essa piada é muito boa.