“Hipócritas, mil vezes hipócritas. Precisa que uma juíza seja covarde e barbaramente assassinada para que a sociedade, governo, juristas, imprensa, políticos, Desembargadores, Ministros, Corregedora do CNJ, Presidente do STF, padeiros, açougueiros, etc. fiquem consternados (será?) e lamentem o episódio.

Ora, pois! Até agora só ‘metiam o pau’ nos juízes, críticas de toda ordem carregadas dos piores adjetivos referindo-se aos salários de ‘marajás’, quando se sabe que os promotores ganham mais que os juízes, sem falar nos que insistem para que os juízes sejam equiparados e tratados como meros servidores públicos.

Se não bastassem as críticas acerbas e injustas, ainda temos o CNJ aterrorizando juízes e fazendo cobranças de toda ordem de modo a nos deixar sem tempo para judicar, para podermos sentenciar com qualidade. De quebra ainda temos que reverenciar Presidentes dos Tribunais de Justiças que nada fazem pela classe e só estão preocupados em melhorar seus currículos fazendo o papel de idiotas e bobos da corte se humilhando e curvando perante os outros poderes.

Que moral o presidente do STF e a Corregedora do CNJ tem prá falar em nome dos Juízes? Será que um dia na vida estiveram juízes como nós mortais? Oras bolas, se estão Ministros se devem a três fatores: boa relação com o governo, falar bonito e escrever bem. Deveriam, ao menos um só dia, ter estado juiz mortal como nós e ter dado a ‘cara’ prá bater como nós damos a toda hora. Deveriam ter tido a oportunidade de, na pequena comuna, anular uma eleição, cassar o prefeito, prender polícia, olhar na ‘cara’ do jurisdicionado 24 horas por dia como fazemos. Deveriam, por justiça, sofrer ameaça de toda ordem como nós sofremos, a exemplo da colega assassinada. Na lista dos jurados para morrer tem Desembargador e Ministro? É evidente que não. Por certo é diferente do que ficar em seus suntuosos gabinetes e distante do cidadão carente e ávido pela rápida prestação jurisdicional, e do juiz que teve a coragem de enfrentar a bandidagem.

Ninguém mais do que eles – Desembargadores, Ministros, os Conselheiros fabricados do CNJ, a nos expor perante a sociedade como somos expostos de forma a atrair a ira do cidadão incauto, dos fabricadores de opinião contra a Magistratura. Hoje a sociedade perdeu de vez o respeito que outrora os juízes detinham. Somos vistos com reservas e desconfiança. Como uma classe de privilegiados em detrimento da pobreza do povo.

Os deuses dos Tribunais só sabem cobrar, mas é fácil cobrar quando um dia sequer vivenciaram o dia a dia dos juízes mortais. É fácil cobrar quando não se está na pele da juíza assassinada. Consternação, indignação, exigir uma rápida investigação, mandar coroa de flores aos familiares da juíza é o ‘prêmio’ que ela ganhou por enfrentar a bandidagem. Você viu um presidente do TJ e um Ministro ser ameaçado de morte? Como pode um Ministro se colocar na pele de um juiz mortal se nunca teve a oportunidade de enfrentar com a ‘cara’ e a coragem todo tipo de pressão e ameaça?

Concordo em gênero, número e grau com os que propalam e defendem, em especial a imprensa, o Senador Suplicy e tantos outros desavisados e maldosos, a tese de que nós juízes devemos ser tratados como meros servidores públicos, sem qualquer diferenciação. Quero uma audiência com o Senador para hipotecar-lhe o meu apoio para acabar com as férias dos juízes e dispensar a nós juízes o mesmo status e regime dos servidores públicos.

Concordo porque se assim formos reconhecidos e tratados, então devemos começar o nosso trabalho às 8 horas da manhã, com uma hora de almoço, e terminar o expediente às 17 horas, exatamente como fazem os gloriosos e abnegados servidores públicos. Assim, nesse ínterim faremos tão somente o que os servidores públicos fazem e nada mais. Durante o expediente devemos tão só realizar as audiências, no máximo duas, despachar e sentenciar processos e cuidar da parte administrativa e, pronto. Assim seremos verdadeiros servidores públicos sem qualquer diferenciação. Justiça feita. Nada de levar processos prá casa; nada de tirar férias para dar ‘cabo’ nos processos. Os servidores públicos não levam os serviços para a casa, e assim como todo servidor público poderemos nos dedicar às boas coisas da vida, como por exemplo, dar mais atenção aos familiares, cuidar melhor da saúde, dedicar ao lazer, jogar conversa fora com os amigos no final da tarde, nos finais de semanas e feriados.

E a prestação jurisdicional como ficará então? Oras bolas, como diria o bom e produtivo servidor público, que se dane o cidadão, a imprensa, o Senador. Que esperem e aguardem o momento oportuno de ser analisado o seu pleito. Se vai levar tempo para dar uma resposta ao pleito do cidadão – uma liminar, uma revogação da prisão preventiva, uma tutela antecipada e tantas outras medidas de caráter urgente, o problema não será nosso (juízes, agora servidores públicos), mas sim do próprio cidadão, da imprensa e do Senador que insiste em nos ver e tratar como um servidor qualquer.

Hipócritas, mil vezes hipócritas. Negam-nos um salário condigno com a atividade que exercemos, com a monstruosa carga de serviços e de responsabilidades; negam-nos direitos adquiridos que temos; negam-nos segurança; negam-nos a dignidade e o respeito e, então, como querer que o cidadão nos respeite? Aprovam leis sem saber o que estão aprovando dando salvo conduto a bandidagem e ainda querem que os juízes façam milagres? Roubam descaradamente o povo e não admitem uma simples investigação. ‘Uai, pobre de nóis sô’, como dizia minha recém falecida mãe.

Uma simples ‘denúncia’ inconsequente e lá estamos nós perante a CGJ e o CNJ nos contorcendo para safar-se e olha que não é fácil. Que constrangimento. Tamanha hipocrisia nunca vi. Eu aconselhei um sobrinho que queria ser padre para que deixasse dessa bobagem porque jamais ele iria chegar a ser papa e, às vésperas de ordenar padre abandonou e hoje faz medicina, mostrou ser um menino inteligente, então eu sempre aconselho meus amigos e estudantes de direito para esquecerem a idéia de querer prestar concurso prá magistratura, e tentem o Ministério Público, ou então a ser Desembargador pelo quinto, ou então Ministro do STJ, STF, ou o melhor de todos, aventurar-se pela política, caso contrário vá plantar abobrinha, criar galinhas.

Hoje não se vê um só juiz que esteja satisfeito com a instituição, com o tratamento que nos é dispensado. Pior, todos, mas sem exceção, estão desmotivados, frustrados, acabrunhados. É certo que ser juiz é um projeto de vida, mas vale a pena hoje bancar esse projeto de vida? Vale a pena você ter que ver os Presidentes dos TJs mendigar e se humilhar perante os dois outros poderes que vivem envoltos com a corrupção para que alguma migalha nos seja dada a fim de melhorar nossos vencimentos, ou então nos pagar o que temos por direito, ou melhorar nossas condições de trabalho e segurança?

Hipócritas. A colega assassinada se tornou mártir ao ser covardemente assassinada. Então pergunto: e nós que ainda estamos vivos nos tornamos o quê? Por certo o vilão dessa história toda por estarmos vivos. Quem sabe, aos olhos da repórter que ironicamente nos criticou, da imprensa, do deputado, do Senador, do açougueiro, do padeiro, do CNJ e dos Ministros, somos corruptos, marajás, vagabundos, servidores públicos privilegiados, enganadores e outros adjetivos desqualificados. Mil vezes hipócritas.

É muito incômodo e revoltante para os magistrados sérios e competentes que se dedicam á causa da Justiça ter que conviver com tamanho desrespeito e com críticas maldosas. Já foi dito que os juízes não têm armas ao contrário dos outros poderes. Não têm o poder econômico e não têm o costume de ir à mídia. Acrescento que não sabem lidar com a mídia porque não sabem ser demagogos e não conseguem enganar o povo. O Judiciário, entenda, os juízes da inferior instância, é o mais fraco dos poderes e por isso tem que ser resguardado e cuidado com carinho, porque ainda que hajam algumas mazelas, mas ainda é a última trincheira e esperança do padeiro, do açougueiro, do frentista, do repórter. Por certo não é a última esperança do Senador, do Deputado e outros, pois legislam em causa própria.

Precisa o cidadão conscientizar de que se não mais poder recorrer e confiar no juiz de primeira instância, não terá ninguém mais quem lhes atenda e aí, com certeza a sociedade não dormirá tranqüila, porque magistrado medroso não é magistrado é arremedo de juiz. E por certo a colega assassinada viveu em toda plenitude a grandeza de ser juíza, ao contrário dos nossos Ministros.

Espero, enquanto um mortal juiz, ter o direito de externar minha revolta com esse estado de coisas sem a ameça de ser punido, não pela bandidagem, mas pela minha Instituição.
Hipócritas, mil vezes hipócritas”.

 

(*) Artigo escrito por Milton Biagioni Furquim, Juiz de Direito, em Minas Gerais, publicado em lista de magistrados, após o assassinato da Juíza Patrícia Lourival Acioli, ocorrida no Rio de Janeiro)