Você já sentou para ouvir chorinho? Diante de um grupo de instrumentistas – violões, cavacos, pandeiro, bandolim -, apreciando a concentração de cada solista-harmônico, embalado pela indolência do som mais brasileiro de todos os sons?

O poster já. É gostosamente adorável de bom.

O poster varou madrugadas fazendo harmonias para solos de composições de Garoto, Jacob do Bandolim, Toninho Ramos, Radamés Gnatalli, Dilermando Reis, Pinxinguinha, entre tantos, sentido-se como se pisasse em nuvens. Agradavelmente céu

Só quem sabe tocar um instrumento já provou desse gozo.

Com mais de 130 anos de existência, o Choro – ou Chorinho, como o poster prefere -, é o entrosamento de improviso mais lúcido-surreal que se possa ter de música. Ninguém no mundo sabe tocar choro como o brasileiro.

Tudo é improviso, criação de hora, com o desenvolvimento de elementos fraseológicos que chamamos de baixaria. As baixarias são melodias feitas pelo violão, diferentes das melodias principais executadas pelo instrumento solista – não só a flauta, mas também o bandolim e outros – e que se tornaram uma das peculiaridades do choro.

Aliás, o que faz o blogger gostar de Brasília – quando por ali anda -, são as suas casas de Choro. Há tantos chorões ali, maravilhosamente encravados no coração do Brasil!

Tocam de tudo: Horondino Silva (o mestre da “baixaria” no violão de 7 cordas), Dino 7 Cordas, Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Época de Ouro, Altamiro Carrilho, Benedito Lacerda, Luperce Miranda, entre outros. O grande Waldir Azevedo (estava esquecendo!), instrumentista e compositor que ajudou para o desenvolvimento e crescimento do choro.

Somente agora, de tão desligado das coisas ‘anormais’ do mundo, tomo conhecimento da morte de um grande mestre: Canhoto da Paraíba, vivente havia anos próximo do respiro final. Pobre, sem ajuda, abandonado numa cidade da região metropolitana de Recife.

É triste, demasiadamente, quando o Brasil perde um talento. Dá pra sentir nas entranhas, nós que vivemos cercados de tanta estupidez, e devaneios do selvagem mundo pela sobrevivência.

Quando o poster ouviu pela primeira vez Canhoto da Paraíba, foi amor de perdição. Tão imenso e apaixonante que aprendeu logo a acompanhar no violão “Tua Imagem”, saboreando noites e noites ao lado de amigos a pedirem a repetição do maravilhoso solo do paraibano arretado.

Só pra se ter idéia da dimensão desse artista, Canhoto da Paraíba é um dos raros casos de violonistas e virtuoses brasileiros que tocam violão canhoto sem inverter as cordas. Quando ele se mudou para o Rio de Janeiro, todos ficaram assombrados com sua técnica e a qualidade das composições.

Seus choros têm um sabor nordestino com uma linguagem harmônica incomum para a época, lembrando muito o estilo de Garoto.

Ao morrer, Canhoto da Paraíba deixa obra imortalizada e a saudades de muitos fãs, entre eles, o blogger.

Ao som de “Tua Imagem”, com solo do próprio compositor, o blog apodera-se do texto “Oração Por Chico Soares, Canhoto da Paraíba”, de autoria de um rapaz pernambucano, chamado Urariano Mota, para reverenciar o Grande Mestre.

ORAÇÃO POR CHICO SOARES, CANHOTO DA PARAÍBA
Urariano Mota
(Fecho os olhos, para melhor falar, abro-os e ergo-os para um céu deserto de tudo, até da esperança. E por isto mesmo, por mais sem razão e sem nexo, o peito que desejaria gritar, fala e balbucia baixinho, ainda que seja inútil o afã de encontrar uma razão para o que vejo.)
Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro mostrai que sois verdadeiramente mãe de todos artistas caídos em desgraça na terra. Existe um homem que é grande no tocar, existe um sereno e augusto artista que é largo e alto de coração, existe um violonista de nome Francisco Soares de Araújo, que a simplificação da gente achou por bem chamar de Canhoto da Paraíba.
Minha Nossa Senhora, esta súplica seria inútil se tivésseis a graça de ouvi-lo, um só minuto. Então saberíeis como ele transporta o céu para a brutalidade e para a angústia de todos animais que somos. Então sorriríeis com ele, e como ele, porque irradiante e empática e comungante sempre foi a sua ventura no tocar.
Esta prece poderia ser tão-só e somente um insulto à dignidade de Francisco Soares de Araújo, se Canhoto da Paraíba não se encontrasse no estado e no ânimo em que se encontra. Sabei, erguida e nobre Senhora dos sonhos dos desesperados, sabei que Canhoto se acha numa cadeira de rodas, com a voz falha, e todo lado esquerdo do corpo, e toda a mão esquerda, cruel e certeira maldição, paralisada. (É assim que a Providência castiga os bons da alma? Se um homem canta pela mão esquerda, será ela a ferida? Se um artista se expande pela voz, será na garganta o seu câncer?)
Sabei, Senhora, que Canhoto está mal falando, a tropeçar nas sílabas, como uma grande criança que cresceu para ser coroada por uma cadeira de rodas, sabei, Senhora, que Canhoto ainda assim sorri. Com quase o mesmo sorriso com que o vi um dia, à luz do dia, ao meio-dia na Avenida Guararapes.
Minha Senhora, o guitarrista Pedro Soler, aquele mesmo guitarrista flamenco a quem Miguel Angel Astúrias declarou, “os teus dedos, Soler, são os cinco sentidos da guitarra”, este Pedro um dia esteve no Recife, em 1975. E disse, “Canhoto da Paraíba é um dos três grandes guitarristas do mundo”. E por ser lembrado desta referência, ao ser encontrado na Guararapes, Canhoto assim respondeu, com o mesmo sorriso de menino bom, que agora insiste na paralisia em que se encontra, com o peito bom de menino que recebe pedras e se alarga, para abraçar as pedras como abraça facas e elogios:
– Num foi? Eu disse a ele, “Tu é doido, Soler?”
E como eu lhe repetisse o elogio de vexame, e para não ficar com a cara gorda e limpa exposta à luz, como uma criança que se descobre nua em rua de adultos, Canhoto assim respondeu à consagração:
– Tu quer um confeitinho? Toma um de menta. É bom, rapaz.
E desta maneira a receber caramelos, a vez de se encabular foi minha. Agora sinto, agora percebo que na pessoa de Canhoto aura nenhuma poderia ser posta, porque o seu maior elogio era a sua própria pessoa: Canhoto, a sorrir, a tocar.
E digo isto, Senhora, quase que em estado de raiva e convulsão, por entre estremeços. Porque o vejo agora e me vem num assalto: Não é assim que se trata um homem. Não é assim que se destrói um artista. Não é assim que se faz reduzir e insultar a memória da gente.
Este a quem encontro em Maranguape I, periferia do Recife, para lá de Olinda, é o mesmo homem que era convidado como estrela máxima de saraus, shows e banquetes? Este, na obscuridade de sua sala, olhando um disco na parede, como um mamute, como um gordo pacífico sem fala, é o mesmo genial violonista de Pisando em Brasa?
Algo procuro, busco uma razão, e para não ser tão cru e cruel como a Providência, que assim pune os nossos grandes, prefiro balbuciar essas desrazões:
– Imaculada Virgem e Mãe minha, Maria Santíssima, a vós que sois a Mãe de meu Salvador, Rainha do Céu, Advogada, esperança e refúgio dos pecadores, recorro: Canhoto da Paraíba tem a perna, as articulações sacrificadas, porque não dispõe de recursos para fazer uma… terapia.
Não essa terapia que ora faço, da súplica do milagre, da clemência aos céus, mas a mais elementar, humana, elementar, uma fisioterapia. Por isto, por falta desta, já reclama, reclama, não, que ele sequer se queixa, por isto já se refere a dormência nas pernas, porque passa o dia entre a cadeira e a cama. Mas disto ele não se queixa – está em repouso, não é?

Sabei, Senhora, que Canhoto é homem de grande resignação. Minto. Menti para ficar dentro da forma beatífica do requerimento a Seus poderes. O que toda a gente toma por resignação (digo-o baixinho, bem baixinho, como um chorinho solado, murmurando) o que toda gente toma por resignação é uma imensa generosidade.

Canhoto sempre foi um deus de fertilidade, tocava e distribuía seus dons com louca e desmedida prodigalidade, como se os seus recursos, porque lhe chegavam, fossem inesgotáveis. Depois do derrame, do AVC, esses recursos subitamente se esgotaram. Mas disso ele não se deu conta. É um Buda que vive e se alimenta dos restos e da sombra do seu nirvana. Daí que não se queixa, daí que de nada reclama.

Canhoto espera que de uma hora para outra seus dedos esquerdos voltem a se articular como antes, e aí, que bom que será! Todas as portas voltar-se-ão para ele, todas as graças, todos os violões, até mesmo a Santa, que acorrerá para ouvi-lo sem necessidade de invocação.
Nós, que não somos Canhoto, é que percebemos que o Rei perdeu o seu cetro, seu poder, seu trono. Nós, que o vemos transparente pela bonomia de sua fala de criança, é que sabemos: à causa “natural” da isquemia, da idade dos seus 76 anos, soma-se a natural organização do mundo.
Canhoto vive de uma modesta aposentadoria que não lhe dá margem para um tratamento de luxo, e o luxo, Imaculada, é uma fisioterapia. Sabei, Santa sobre as santas, que ele recebe aposentadoria por suas atividades de burocrata, de funcionário do SESI, por ser Francisco Soares de Araújo. Da sua razão de ser – da sua razão de viver, da sua razão de morrer – do gênio de ser Canhoto da Paraíba … nada, nada, nada.
Assim não são os bens espirituais? Nada, nada, nada. Dos políticos, dos deputados, senadores, governador do estado, prefeitos, nada, nada, e minto. Minto, minha Santa: destes tem recebido uma segura e intransponível distância. Ou melhor, nesta altura, fui injusto.
Agora em junho deste ano, o nosso violonista foi a Brasília, para inaugurar, com chave de ouro, o Projeto Pixinguinha. Ali, Canhoto recebeu um aperto de mão do Presidente. Por isto, minha Santa, por isto, Imaculada, já que sois tão poderosa diante de Deus, fulminai para sempre e eternamente com vossos raios a insensibilidade humana. Porque existe um homem, que um dia foi Canhoto da Paraíba, que jaz numa cadeira de rodas, em Maranguape I, Paulista.

Sem se queixar e a sorrir, e por assim estar, a machucar o coração da gente.