Sempre gostei de sintonizar o dial de emissoras AM. Agradável mania arraigada desde meus 10 anos de idade quando gozava as férias escolares em um castanhal de meus pais, às margens do rio Vermelho – afluente do Itacaiúnas. À noite, dentro de ume rede coberta por longo mosqueteiro estrategicamente colocado para nos proteger das picadas de pernilongos e mosquitos transmissores da malária, ficávamos a ouvir estórias dos ingênuos castanheiros que logo dormiam, cansados da labuta diária.

Como o sono demorava a chegar, eu ligava o receptor na estação de melhor qualidade de sintonia, varando a noite ouvindo locutores de todas as partes do país – , quando não me enfurnava a buscar estações do Líbano que meu avô providencialmente ensinara desde meus sete anos -, “para aprender a falar árabe”, dizia ele com seu sotaque “portulibanês”.

Anos depois, o vício pelo rádio me transformaria num excêntrico colecionador de receptores recém lançados no mercado. Carreguei esse hábito até a predominância das estações FM, que paulatinamente foram invadindo o dial e, provocando também, transformações no perfil dos fabricantes que deixaram de investir em bons receptores. A partir dos anos 90, tornou-se difícil encontrar um aparelho de rádio AM de boa qualidade. Aos poucos, também, fui perdendo o encanto pelo veículo que mais paixão me provocou. E fetiche.

A verdade é que foi o Rádio, numa noite de passeio pelo dial de um receptor Transglobe 2148 (melhor modelo da melhor marca fabricada em todos os tempos) quem me revelou a existência da Guerrilha do Araguaia.

Corria o ano de 1973. Sem querer, naquele lance de pesquisar estações, parei numa freqüência que a cada minuto, entre um sobe e desce de trilha com marchas e hinos marciais, destacava a bonita voz grave de um locutor:

– Aqui é a Rádio Tirana, falando diretamente da Albânia para o Brasil, com mais um programa noticioso sobre as forças guerrilheiras do Araguaia que lutam para libertar dos usurpadores do poder, o povo oprimido e pobre da Amazônia.

A frase, ilustrada com suave BG (fundo musical), era repetida diversas vezes, antes de entrar o noticiário da noite. Espécie de chamada preparatória para segurar audiência.

A partir dessa descoberta, o hábito que temos hoje de acessar a Internet, eu tinha de ouvir a Tirana. Toda noite, onde estivesse, haveria um receptor a me acompanhar para a sintonia obrigatória. Em pouco tempo, meus amigos passaram a fazer o mesmo, e criou-se uma corrente de ouvintes da emissora albanesa, país que se manteria por longos anos a última trincheira do comunismo mundial.

Naquele tempo, algo me intrigava: a rapidez com que os fatos ocorridos no front do Bico do Papagaio chegavam ao conhecimento dos redatores do programa dirigido ao Brasil. Notícias fresquinhas de tudo o que acontecia aqui. Não que a gente soubesse dos fatos “fresquinhos” noticiados por alguma emissora de rádio brasileira. Impossível. A ditadura jamais permitira. A Tirana, em verdade, era o único meio pelo qual podíamos saber o que estava acontecendo no Brasil.

Nosso herói anônimo
A resposta para a minha curiosidade obtive somente mês passado, trinta e quatro anos depois. Mais precisamente depois de descobrir o endereço de certo alguém, filho de ex-mecânico de veículos bastante conhecido na Xambioá dos anos 60/70.
Nas longas entrevistas com as vítimas da Guerrilha do Araguaia, seu nome foi sugerido como a de outra pessoa conhecedora do confronto. Todavia, recebi duas orientações, se pretendesse obter sucesso em minha empreitada:

1- Não revelar o nome do personagem nas matérias a publicar;

2- Ocultar também a localidade onde reside atualmente o senhor com sua família, ainda temerosos de perseguição. Saldo do trauma da guerrilha.

Parei numa oficina no centro da cidade com a desculpa de tentar descobrir ruído estranho que de repente surgira no carro. Em verdade, o barulho irritante aparecera cinco dias antes -, resultante de uma borracha do amortecedor danificada.

Um educado e brincalhão mecânico, dono da assistência, enquanto vasculhava o veículo, revelou-se profundo conhecedor da região. Só isso já me bastava para, com habilidade, forçar o cidadão – 59 anos, 5 filhos -, a falar sobre o surgimento das cidades do Sul do Pará que ele revelava surpreendentemente um expert. Em pouco mais de 40 minutos estávamos familiarizados. E ele não teve dificuldades em se abrir mais ainda quando tomou conhecimento de minha identidade:

– Quando morei em São Domingos, gostava de ouvir o que você falava na Rádio Itacaiúnas, principalmente quando ‘chafurdava’ a classe de políticos desonestos.
Lembrou Manoel (nome fictício), a fase em que eu dirigia a primeira emissora de rádio de Marabá, por volta de 1986/88.

Passava das 18 horas quando o problema do carro foi solucionado com a troca da borracha do amortecedor direito. Na oficina, mais três rapazes o ajudavam – um deles, o filho caçula. Como não podia perder a oportunidade de sugar informações de meu mais novo amigo já que decidira permanecer o dia seguinte na cidade, convidei-o para jantarmos. Ele foi mais insistente: queria a qualquer custo me levar à sua casa para conhecer a família, dizendo que providenciaria algo para comermos.

Depois do banho e troca de roupa no hotel, Manoel chegou no seu carro, modelo Gol/1999, muito bem conservado, numa comprovação de que nem toda casa de ferreiro, o espeto é de pau. Em sua casa, nos aguardavam a mulher e o filho mecânico. O restante da família mora em outras cidades. O jantar já estava posto, bem simples, servido numa grande mesa no fundo do quintal. O papou de alongou até bem tarde.

O pai dele era técnico em eletrônica. “De mão cheia, consertava rádio que não se via igual”, contou orgulhoso. Como fizera com todos os demais filhos homens, “seu” Nivaldo ensinou a profissão a Manoel, que na realidade gostava mesmo era de ver mecânicos consertando carros. E o sonho era alimentado toda vez que ele passava em frente à oficina do Tonho, cujo proprietário fazia dois anos chegara a Xambioá, montando o negócio que se diferenciava dos demais do ramo devido a organização e a fama conquistada, pelo dono, de ser um mecânico sério -, “e que não era careiro como os outros da cidade e das oficinas existentes em São Geraldo, do outro lado do Araguaia”.

Exatamente no dia em que completara 25 anos -, ele nunca esquece a data -, Toninho chegou cedo na Eletrônica de seu Nivaldo, naquele dia viajando para Araguaína.

– Meu pai não está. Em que posso ajudá-lo?

– Só seu pai mesmo. Disseram que somente ele é capaz de consertar um equipamento meu que pifou.

Manoel sentiu ali a oportunidade de fazer amizade com Toninho, abrindo, consequentemente, a chance de aprender os passos iniciais da profissão que tanto sonhava.

– Ele deve voltar dentro de três dias. Se não for tanto urgente, prometo que nem bem ele chegue vou avisá-lo de seu retorno -, mentiu, na tentativa de forçar o cliente a pedir sua ajuda.

A tática deu certo. Toninho parecia apressado em resolver a pane no equipamento até então desconhecido de Manoel, que de inicio imaginava tratar-se de um receptor de rádio. Seria mole pra ele.

Tecnologia alemã

Nos fundo da oficina, três cômodos de madeira transformados em residência ocupavam o pequeno quintal. Sobre a mesa de refeição da cozinha, havia um transreceptor miniaturizado jamais visto pelo técnico.
– Já viu algum equipamento deste?

– Não. Mas isso deve ser um transmissor. Não sei o modelo. Qual o problema?

Fabricada na Alemanha, a pequena engenhoca seria de um primo de Toninho que ali deixara fazia cinco meses com objetivo do dono da oficina vendê-la a algum interessado em Araguaína ou Imperatriz, cidades para onde o mecânico sempre viajava. Toninho dissera que com o tempo aprendera a operar o retransmissor, falando à noite com rádio amadores – muito comum àquela época.

O certo é que Manoel, depois de três horas, colocou o aparelho para funcionar. Festejado pela operação bem sucedida, o preço cobrado pelo conserto foi deixá-lo aprender os ofícios da mecânica. Em quatro meses, os dois se tornaram mais amigos do que patrão e empregado. Seu Nivaldo perdera o filho na eletrônica, agora espécie de sócio de Toninho.

Ao mesmo tempo em que tudo isso acontecia, o pequeno povoado de Xambioá já se transformara numa das bases de operação mais importantes das Forças Armadas, com a implantação de acampamentos e sobe e desce de aviões de todo tamanho. A conversa que se ouvia era de que “os fardados” (na verdade nunca chegaram a usar fardas, mas isso é outra história) buscavam “os paulistas”. Os “homens da mata”. Os “subversivos”.

Já se passara quase um ano do novo emprego de Manoel. A amizade consolidada com seu patrão só não permitia a ele acompanhar Toninho em suas estranhas pescarias pelo rio Araguaia.

– Eu nunca entendia aquilo. Sempre disposto a ter amigos em sua volta, na hora em que saía para pescar, Toninho jamais permitia companhia. Um dia perguntei se podia pilotar sua lancha motorizada com um johnson 25hp, raro naquela região, já que eu conhecia todos os canais dos pedrais do Bico do Papagaio, principalmente os mais perigosos em torno da Serra das Andorinhas. Ele não aceitou, dizendo que pescava sozinho, desde criança, e que o hábito lhe dava sorte para pegar bons peixes.

Efervescência militar
Primeiro trimestre do ano de 1974. Numa tarde chuvosa correu informação de ‘batidas’ residenciais a serem realizadas pelos “homens da Agropecuária” (denominação de um dos alojamentos da duas supostas construtoras instaladas ali desde o ano anterior. O outro se chamava “Mineradora”). A ordem era prender quem estivesse com rádio sintonizada numa “estação comunista”.

A repressão militar ocorreu. Dezenas de homens e mulheres foram presos, libertados cinco dias depois com a recomendação de que se tentassem ouvir novamente a estação seriam recambiados para Brasília. A partir desse fato, “a rádio do locutor que falava da guerrilha” era sintonizada clandestinamente, às escondidas em quartos fechados ou no fundo de quintais.

Até o dia da primeira ‘batida’ dos militares nas residências de Xambioá, Manoel jamais se interessara pela “rádio dos comunistas”. Nesse período, eventualmente ele dormia na casa de Toninho quando ambos ficavam até tarde na oficina adiantando serviços. Deitados em redes atadas uma ao lado da outra, vez por outra o patrão perguntava ao empregado o que ele achava dos comentários dando conta de que os militares estavam prendendo e torturando agricultores para que eles denunciassem esconderijos dos “paulistas”. Como não achava nada, Manoel disse que pouco entendia do que estava acontecendo. Estavam nesse nível de conversa quando, de repente, bateram à porta lateral da casa que dava para uma esquina escura. Era Zé Mandi, seu ajudante de mecânico.

– Seu Toninho, o senhor já soube que ‘os home’ espancaram tanto o Gilberto da Baleia, lá na Bacaba (lugarejo a 50 km do então Estado do Goiás sentido Marabá às margens da rodovia Transamazônica) que ele não resistiu, vindo a falecer? Não escapou ninguém. Nem crianças. Todos entraram na taca.
Como se tivesse levado um beliscão, Toninho pulou da rede e, sem perda de tempo, vestiu-se rapidamente, saindo às pressas dizendo que ia pescar. A noite estava iluminada e ele aproveitaria para sair daquele clima de agressão que não lhe deixava bem. Antes de descer a ladeira com seus apetrechos de pescaria, recomendou que Manoel cuidasse de tudo na casa. Até às 6 horas da manhã, estaria de volta.

O relógio marcava pouco mais das 22 horas.

“Desconhecido destino prisioneiros”

A saída brusca do patrão deixou Manoel impaciente. Alguma coisa lhe dizia não ser normal aquelas pescarias extemporâneas. Decidiu ficar atento para descobrir algo mais. E esse “algo mais” apareceu pouco antes de amanhecer, com o retorno de Toninho da pescaria.

Passava das 4 da manhã quando, deitado em sua rede, Manoel ouviu o ruído do motor johnson 25hp se aproximando do porto, ora acelerado, ora sendo desacelecerado – movimento comum em toda operação de aportar barcos.
Do alto da ribanceira, sem o patrão vê-lo protegido pela escuridão da madrugada, o curioso rapaz ficou observando os movimentos do mecânico saindo da lancha com os apetrechos de pesca, dirigindo-se em seguida a uma barraca havia vários anos situada entre os arbustos altos à direita do porto de Xambioá.

Toninho, antes de entrar no casebre, olhava para todos os pontos da beira-rio como para certificar-se de que não estava sendo observado. Demorou uns cinco minutos lá dentro, e saiu apressado subindo ladeira.

Nesse dia, tão logo chegou a noite, Manoel desceu a ribanceira com uma lanterna na mão e pela parte de trás do barraco usado por Toninho quando retornara da pescaria, percebeu que podia acessá-lo tirando duas telhas de brasilit. Foi o que fez, sem ser visto. Dentro do barraco, apenas redes e tarrafas de pesca sobre um tambor de óleo de 200 litros. Mais nada.
Já ia subindo para sair pelo lugar destelhado quando o foco da lanterna indicou uma folha de papel de embrulho de cor cinza. Providencialmente, Manoel colocou-a no bolso da calça e saiu. Já em casa, observou que a folha de papel tinha algo escrito ( a mesma folha de papel até hoje em seu poder, foi mostrada a mim durante a gostosa conversa que mantivemos no jantar do mês passado).

Corroída pelo tempo, mas bem conservada numa caixa de papelão, a folha de papel tem o seguinte texto escrito à mão com uma caneta provavelmente de tinta azul:

“Titica para Tirana. Ativada OP Perseguição a GA. Muitos moradores e camponeses presos. Pop rural assustada perseguição. OP desconhecido destino prisioneiros”.
Essa mesma folha de papel deixada no barraco por esquecimento fora mostrada dois dias depois a Toninho, que tomou um susto ao vê-la nas mãos de Manoel. Foi quando o mecânico revelou ao amigo, sua verdadeira missão em Xambioá: fazer o relato semanal (ou quando um fato novo ocorrido no front justificasse nova arriscada transmissão), via código de morse, para uma estação localizada em Cuba, que imediatamente o repassava a Rádio Tirana, na Albânia.

A partir desse dia, Manoel era um dos raríssimos brasileiros sabedores de que em Xambioá havia alguém transmitindo para a Albânia mensagens sempre num código alfanumérico narrando as barbaridades da Guerrilha do Araguaia. Toninho lhe revelara o segredo com a recomendação de que se alguém ligada ao governo soubesse daquela operação, não sobraria ninguém vivo. O segredo ficou até hoje.

“Me deixa fora disso”

Toninho, que na verdade tinha outro nome, deixou Xambioá tão logo ele enviou mensagem narrando o assassinato da guerrilheira “Dina” e da fuga sem sucesso de dois padres franceses, presos, torturados e mortos na Bacaba no final de outubro de 1974.
Ou seja, do jeito misterioso que chegou, Toninho sumiu de Xambioá. Até hoje Manoel não sabe o seu paradeiro, mas têm certeza de que as forças do SNI não puseram as mãos nele.

Manoel conta que por duas vezes foi levado ao ponto onde o rádio-telegrafista tirava do fundo da terra três potentes transmissores – inclusive o que ele consertara no dia de seu aniversário. Descendo 20 minutos de lancha o Araguaia, numa parte da Serra das Andorinhas acessada através de uma ponta de riacho que nascia do igarapé Xambioazinho, Toninho fizera sua base, protegida por mata fechada. No local, depois da retirada de excessiva quantidade de mato, via-se imensa vala fechada com uma tampa bem protegida de concreto. Lá dentro, o buraco de 1,5 X 1,5 metros, todo revestido de cimento, para proteger os equipamentos das intempéries. Cada transmissor ficava enrolado a imensos plásticos de cor preta.

Manoel não soube responder se as ‘pescarias’ de Toninho rendiam algum peixe. Ele lembra, no entanto, que o rapaz retornava de suas repentinas viagens sempre ostentando, orgulhoso, os pescados do dia.

Demonstrando profundo conhecimento do assunto, Manoel disse que Toninho operava numa freqüência de seu transreceptor FM acima de cento e trinta megahertz, bem distante da faixa usada pelos militares que tentavam localizar o ponto de transmissão de alguma base comunista, sem sucesso.

Um dia, conta Manoel, o ‘mecânico’ lhe mostrou um rádio de tecnologia mais avançada. “O equipamento lhe permitia captar sinais dos aviões militares que sobrevoavam a região em busca dos guerrilheiros. Só tinha um problema. Toninho ouvia o que a tripulação dos aviões comunicava, mas não conseguia obter a resposta das tropas em terra. Se ele tivesse conseguido isso, a história da guerrilha poderia ter sido outra”, acredita, sonhador, Manoel.

Quando lhe convidei a gravar um vídeo contando a participação de Toninho na Guerrilha do Araguaia, Manoel reagiu com dureza.
Nunca pense nisso. Já sofremos muito aqui em casa por causa dessa guerra, que na verdade não foi uma guerra. Foi uma perseguição implacável de um Exército a um grupo de 60 pessoas. Tem noites que acordo me lembrando dos soldados pelas ruas de Xambioá, e choro. Eu e minha mulher. Me deixa fora disso. Quando falo nisso me sinto um morto-vivo.