A publicação de áudio  com a voz do deputado federal Arnaldo Jordy, reconhecido agora sua autenticidade pelo próprio parlamentar em entrevista à imprensa de Belém, está tendo desdobramentos e repercussão além-fronteira.

As redes sociais “bombam” o assunto.

Ghyslaine Cunha, colaboradora do blog, publica texto sobre o tema.

 

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A vitima, no caso, é a mãe

(*) Ghyslaine Cunha

 

 

Aqui neste blog e em outros tantos, tão prestigiados e sérios quanto este, o tema gira em torno da política, da disputa à prefeitura de Belém, do aborto, da ética, etc quando se remete ao recente vídeo publicado no You Tube, no qual um homem, deputado federal, teria induzido uma mulher a abortar um filho seu.

Ele já admitiu em entrevista à imprensa,  e isso está público, que a conversa existiu, que a situação é real, mas nega que a tenha induzido ao aborto, e joga toda a argumentação de sua defesa no óbvio: armação política. Escutei o áudio e, a meu ver, não se trata apenas de indução, mas de forte pressão.

Primeiro, uma ressalva: conheço o deputado. Nada tenho, pessoalmente, a reclamar contra ele. Sempre me tratou com grande respeito e cordialidade nas poucas vezes em que estive em sua presença cuidando de interesses de uma categoria específica de trabalhadores, acompanhando uma liderança sindical. Não estou filiada a partido algum, mas escolhi, já, um pré-candidato na disputa eleitoral em Belém, e ele guarda larga vantagem sobre todos os demais. Isso afirmo para deixar claro que não há, de minha parte, nenhum interesse em abordar os fatos pelo viés da disputa eleitoral partidária. Aliás, quero tratá-los exatamente por outro aspecto: embora reconhecendo os meandros políticos eleitorais da questão em tela, e não poderia deixar de reconhecê-los, toda essa situação revela o quanto ainda é forte nosso ancestral e enraizado machismo, inclusive, e esse é o que mais assusta, o machismo nas mulheres.

Qualquer mulher que tenha passado por situação semelhante sabe o que significa estar grávida e precisar pedir ajuda ao pai da criança para compartilhar afetos, cuidados, custos, amor. A gravidez, mesmo em seu início, quando a mulher se descobre gestando um ser, é um período especial, difícil, belo, cheio de medos, dúvidas, certezas, onde a mulher precisa ser fortaleza mesmo estando, em alguns momentos, mais frágil. Carregar no ventre uma nova vida é uma responsabilidade imensa! Logo mais vamos comemorar o dia das mães e é bom pensarmos no que significa, emocionalmente, para uma mulher, a decisão de ser mãe, neste caso, de não interromper a gravidez e deixar nascer o filho que carrega. Quero aproveitar pra dizer que gostaria de dar um abraço especial na Josi neste dia das mães, agradecendo, por seu filho, sua corajosa decisão.

É disso que se trata. O que escutei no áudio foi uma moça lutando por defender o direito de deixar nascer seu filho. Argumentando com o pai desse filho que não conseguiria, emocionalmente, carregar o peso de realizar um aborto. O pai, ao contrário, diz a ela claramente que não tem condições de assumir ‘isso’ e que quer dar o apoio para ela resolver ‘isso’. Afirma depois que a ajuda a pagar o psicólogo pra superar o trauma. Que trauma? Do aborto. Ou algum outro trauma poderia ser aventado no caso?

Tendo ou não condições de ter o filho, ele já existe no corpo da mãe. Uma vez que os dois mantiveram relações sexuais sem se preservar para evitar a gravidez, os dois têm igual responsabilidade sobre o filho e, embora o homem tenha o direito de opinar, a decisão última de ter ou não o filho é da mulher porque só ela sabe o que significará física, emocional e espiritualmente o ato do aborto, ou a gravidez e a maternidade, em sua vida. Assim como ela deve ter o direito de interromper a gravidez, também deve ter o direito de prosseguir a gravidez até o parto. E homem nenhum pode pressionar contra isso.

O corpo é dela. É dela o lugar da fala. Não dele. É ela quem está sendo atacada por ele, porque ela tem o poder de decidir ter, ou não, o filho que ele não quer. Neste momento a ação é dela, a reação é dele. E a reação dele é para que ela tome a decisão mais difícil para ela, mas a mais conveniente para ele.

Ocorre que, por ser ele quem é, o olhar da política se desloca para ele e as suposições políticas levam a transformar a mãe em vilã da história. Mesmo ante o fato de que, provavelmente, o vídeo só foi publicado por ser ele quem é, a publicação, em si, é secundária diante do central. O central, quando se amplia o olhar, está na mulher, na mãe e em seu direito ao corpo, pedindo ajuda ao pai da criança para continuar a gravidez, para assumir o filho que fez junto com ela.

Tudo pode ter sido armação política? Nem tudo. O principal, não foi. O vídeo ter ido parar no You Tube pode ter sido armação política, ou vingança de quem quer que seja. Mas o vídeo desvela contradições muito graves na fala, na vida de um homem. Qualquer homem? Não. Um homem que representa parcelas da sociedade que nele votaram exatamente porque acreditaram em seu discurso.  Um legislador que trabalha, por ter sido eleito para isso, onde se decidem questões relativas à saúde da mulher, como, por exemplo, o aborto. O que pensa realmente esse homem? Em que acredita, verdadeiramente, esse legislador?

Pessoas públicas são lideranças e sua responsabilidade social é maior. A meu ver, a cobrança por coerência é legítima. Não se pode admitir de uma pessoa qualquer, quanto mais de um homem público, quanto mais de um legislador que rasgue, despedace, destroce inteiramente, aquilo que diz defender.  Aí temos uma completa inversão de valores.

Para finalizar estou convencida de que os temas aqui abordados, desvelados neste lamentável episódio, são tão privados quanto a violência doméstica. Um homem, quem quer que seja ele, pressionando uma mulher a abortar, nem de longe é um tema apenas da vida privada. Felizmente temos avançado nesse ponto em termos legais.

Recentemente o STF decidiu que a Lei Maria da Penha é válida mesmo em casos nos quais a vítima não faz ou retira a denúncia de agressão. Outro grande avanço, nesse caso no STJ, foi a condenação de um pai à indenização por abandono afetivo do filho. Lembro aqui, também, a decisão que tornou criminosa a agressão física dos pais sobre os filhos. Esses exemplos mostram que há novas balizas na definição de vida pública e vida privada, seja porque a instituição família está de tal modo fragmentada, o que acaba tornando necessário judicializar a vida doméstica e o afeto, seja porque uma situação que coloca sob risco o direito de uma pessoa, mesmo entre quatro paredes, é uma ameaça a toda a coletividade que estabeleceu regras, leis de convivência.

Penso que a melhor defesa para o deputado, neste momento, não é o ataque, mas é a transparência, a verdade. Por ser uma questão política – o direito da mulher a decidir sobre seu próprio corpo, e por envolver um tema polêmico como o aborto, a questão é pública. Mais ainda por se tratar da conduta de um homem público, um legislador. Quanto ao principal, não resta a menor dúvida: a vítima, no caso, é a mãe.

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(*) – Ghyslaine Cunha (como ela mesmo se apresenta) é mãe de Cecília, eterna estudante das ciências sociais e políticas, vegetariana e esotérica, apaixonada por poesia, crônica e boa música, editora do blog http://amoresmeusvidaminha.zip.net . Também presta assessoria política e em planejamento e gestão a associações e sindicatos de trabalhadores, pequenas empresas, mandatos e outras organizações populares.