É crônica, sim. Jamais poderia deixar de ser transformada em tal. A vida, como ela é: crônica nossa de todo dia.
Mas o fato ocorreu no fórum de Marabá, contada por um juiz.
15 anos, viciada em cocaína. Nos braços, as marcas. Foi presa dentro de casa mesmo, dando a maior alteração, agredindo todo mundo. Destino: uma sala qualquer de uma delegacia de polícia, enquanto se arranja uma escola de recuperação só para menores.
Marabá não tem essas coisas.
– Doutor, ela sempre teve do bom e do melhor, estudou nas melhores escolas de Teresina, foi expulsa de todas – antes de fugir pra Marabá.
– Escolas de freiras. Internada. Quem é que disse que eu queria ser internada? Eu queria ficar em casa.
– Ela sempre teve toda assistência. Tudo o que eu fiz foi para o seu bem.
– Que nada, doutor, há seis anos que eu não vivo com a minha mãe.
O juiz assistia ao filme que via de vez em quando. Outros personagens, outras histórias, mas com um enredo repetidamente igual. Tentava entender melhor as coisas para dar uma solucao ao caso, coisa muito difícil de fazer. Não era fácil decidir o que era melhor, e para quem.
A mãe, assistente social, morava em Macapá. A menina, que sempre teve tudo de bom do melhor, morava em Marabá com o pai, inválido. De vez em quando aparecia o “tio fascista”, irmão da mãe, para ver se eles estavam precisando de alguma coisa. E de vez em quando aparecia também a mãe, pra ver. Como dessa vez. Estava ali, vendo.
Entra o tio.
– Ela é rebelde, doutor. Não respeita autoridade nenhum. Não respeita a autoridade da família, do Estado, da polícia, nada.
– Deixa de falar idiotice. Você não entende nada, só quer saber de política, você é um merda.
– Olha aí, doutor, não disse?
– Bem, o que a gente faz com a menina? – pergunta o juiz.
– Não sei, doutor, já fiz tudo que poderia fazer. Agora é o senhor quem decide – diz a mãe, mecanicamente.
A menina chorando e chorando.
– Eu quero ir pra casa. Vocês não entendem? Eu tenho condições de me recuperar em casa, é só vocês entenderem, dar tempo ao tempo. Eu preciso ir pra casa.
– Mas em casa ela não tem condições de se recuperar – diz o tio.
A mãe concordou.
– Já tentaram internar em clínica? – pergunta o juiz.
– Não adianta, já fui internada duas vezes e não adianta nada. Não é possível que vocês não entendam que nada disso adianta. O que eu quero é ir pra casa. O culpado disso tudo e esse desgraçado – e aponta para tio, que ficou vermelho de raiva e chegou a levantar a mão para espancá-la, no que foi impedido pelo juiz. Não cruzo com ele e nem ele comigo. E faz de tudo para atazanar a mina vida. Eu estava numa boa, em casa, e não picava há uma pá de tempo. De repente, ele chega e tumultua tudo. Não tem uma vez que ele vai lá em casa e não pinta uma briga, uma confusão. Diz que eu não quero nada com a vida, me xinga, me agride. Aí, me piquei, piquei mesmo. E ele me entregou. Vê se pode, me entregou pra polícia.
O destino da menina acabou sendo mesmo a clinica de recuperação. Naquele dia, teve de ser encaminhada a uma sala de delegacia. No dia seguinte, a mãe teria que passar no juizado com o nome de clinica escolhida, a terceira da vida da menina.
Antes de sair, ela se virou para o amigo do juiz que assistiu a tudo e fez um pedido, com o gesto natural d quem pede amor.
– Escuta, você me faz uma visita?
Bia
4 de maio de 2009 - 16:46Boa tarde, caro Hiroshi:
O apelo da menina é o mais tocante de toda a cronica.
O usuário de droga é doente.E o que turva essa compreensão pela família ou amigos, são as águas do preconceito e da ignorância.
Fácil perceber isso: quando nosssos filhos são pequenos, ou mesmo adultos, reconhecemos e cuidamos com desvelo e urgência dos sintomas de gripe, da pneumonia, das doenças, enfim.
Mas, se o sintoma é o uso de drogas, tendemos a ignorar os sintomas. Se não conseguimos ignorá-lo, duvidamos que seja doença. E, se acreditamos que o seja, ou nos envergonhamos da doença ou nos sentimos culpados por ela. E é aí que tudo dá errado.
Aprendi todos os passos que descrevo acima e passei para o único que leva a resultados: é uma doença e não há culpas, de nenhum dos lados. O que há é tratamento e conduta. Para toda a vida.
A medida dessa compreensão é o amor. Não aquele incondicional ou que não tem ou impõe limites. Isso não é amor, é rendição. E nada de bom vem da rendição de um e derrota do outro.
Bela cronica, Hiroshi. Que seja boa também para todos os que dela precisam.
Um forte abraço.