Neste domingo quero dividir com vocês pequenos instantes de alguns exemplares da obra extraordinária do compositor maranhense, nascido em Pedreiras, João do Vale.

De origem muito pobre, o compositor era capaz de encantar pessoas dos mais diversos matizes.
Devo dizer que o considero uma das figuras mais importantes da música popular brasileira. Quando os grandes centros do país tomaram conhecimento de sua existência e lhe reconheceram os méritos de compositor -, exatamente a partir de 1964/65, quando se realizou a temporada do show Opinião -, pouca gente se deu conta do que ele realmente já significava como expressão de nossa cultura popular.
Isso se deve ao fato de que João do Vale não era um compositor de origem urbana e que só muitos anos depois o país começou a vencer o preconceito que cercava as manifestações populares sertanejas. É verdade que em determinados momentos, com Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, essa música conseguiu ganhar o auditório nacional, mas para, em seguida, perder o lugar conquistado.
É o tamanho do Brasil. Sua diversificação. Basta dizer que, quando João do Vale se tornou um nome nacional, já tinha quase trezentas músicas gravadas, que o Nordeste inteiro conhecia e cantava, enquanto no Sul ninguém ainda ouvira falar nele.
Lembro-me da primeira e única vez que o vi cantar em público, na sede da AABB, na cidade de Imperatriz (MA). Dentro de um terno branco engomado, pisando sem jeito com uns sapatões de verniz, entrou em cena.
Parecia encabulado, mas quando começou a cantar, empolgou o auditório.
Chico Buarque, responsável pelo movimento que reuniu dezenas de artistas para a gravação de um LP com coletâneas de João, faz dueto com ele em Carcará:

“Carcará” descreve a tenacidade de uma ave de cauda branca, cabeça e asas escuras, que se assemelha a um falcão e é encontrada na América do Sul. O carcará também é conhecido como carancho, nome que vem do tupi ka’rai e quer dizer arranhar, rasgar com as unhas. Revendo a história da vida de João, ele parecia ser o próprio carcará.
Em cinquenta anos de carreira, foram mais de setecentas canções. Em muitas delas, João do Vale tem parceiros desconhecidos. São pessoas a quem ele pedia ajuda para por no papel o que havia composto. João mal sabia assinar o próprio nome. Deixou a escola ainda menino. A vaga dele foi dada ao filho de um coletor de impostos que tinha acabado de chegar a Pedreiras. A mágoa ficou para a vida toda e o músico jamais quis voltar à sala de aula.
“Minha História” é um canto biográfico relatando origens de sua geração, vida difícil do interior, hino de louvor aos amigos pobres de João que permaneceram em Pedreiras –“não puderam estudar nem sabem fazer baião”-, enquanto o conterrâneo escapou da aldeia para vencer no Sul.

Tenho uma relíquia: trechos do show Opinião, gravado ao vivo. Há momentos inesquecíveis da performance de João do Vale dividindo o palco com Nara Leão e Zé Kéti (Nara seria substituída posteriormente por Mariá Bethânia). João fazia o público ora rir, ora chorar, com a força e a sinceridade de sua música e de sua palavra. Saía de Pedreiras para dar voz nacional ao sertão.
“A Voz do Povo” é um grito de João à liberdade. Ele já sentia na alma os efeitos iniciais da ditadura implantada em 64. Não sabia o que era esquerda nem direita, mas o coração reagia.
Paulinho da Viola dá uma interpretação límpida à obra do maranhense.

Iletrado, gente do povo, negro, de família numerosa, originário de pequeno e pobre município do Maranhão, João deixou uma obra onde a autenticidade dele é a marca principal. Mas não só nisso, e não apenas no seu talento, como também em sua cultura. Há gente que pensa que culto é apenas quem leu muitos livros. No entanto, ele é a expressão viva de uma cultura que não está nos livros mas na memória e no coração dos artistas do povo. Duas músicas comprovam isso com extrema magia: A Ema Gemeu e Oiricuri, Segredos de Sertanejo.
A Ema Gemeu mereceu gravação até de Gilberto Gil. Mas é com Jackson do Pandeiro onde suingue e paixão se misturam na descrição de crenças e crendices do sertanejo.

Oiricuri, Segredos do Sertanejo também narra a sabedoria do povo do sertão. Fazendo dueto com Clara Nunes, João produziu um trecho arrepiante:
“Lá no sertão quase ninguém tem estudo/ Um ou outro é que lá aprendeu ler/ Mas tem homem capaz de fazer tudo, doutor/ E antecipar o que vai acontecer”.

O conjunto das mais significativas canções de João Do Vale é um intricado vínculo entre as mesmas e o contexto social nordestino e brasileiro de um modo geral. Trata-se, na verdade, de uma profunda inter-relação entre o compositor, sua obra musical e seu meio sócio-cultural, sendo este o lugar por excelência da motivação criadora e da recepção. Desse modo, podemos constatar que o cancioneiro de João do Vale é obra musical que se fez uma autêntica voz de denúncia, de defesa e de resistência contra as injustiças sociais vividas pelo povo daquele lugar.
“De Teresina a São Luís” podemos viajar num trem apertado, que mais atrasa do que anda. Bem humorada, a canção mapeia a região árida do sertão descrevendo suas gentes e comunidades que até hoje padecem dos mesmos males, quase 40 anos depois da canção ter sido criada.
——-
atualizado às 15:10:
Nesta versão, Zeca Baleiro a gravou com outro conterrâneo: Tião Carvalho.

Um dia, o inflamado Carlos Lacerda expressou sua admiração por João: “João do Vale não faz parte dessa tropa ideológica da esquerda festiva. Com a sensibilidade de seus versos, ele fala do que viveu e conheceu na pele grossa de trabalhador braçal“.
Tom Jobim declarou seu “amor à primeira vista” pela grandiosidade da obra do maranhense.Amou tanto que faz dueto com ele na belíssima “Pé do Lageiro”. Observem a elitização do arranjo de Antonio Brasileiro sem deixar a simplicidade ‘dos instrumentos de percussão de lado. Espécie de Concerto-Acústico maravilhoso. Nisso aí, Jobim era gênio.

A cantora Marlene gravou “Estrela Miúda”, canção inspirada numa toada de Bumba-meu-Boi, festa popular no Maranhão e que fez parte da infância do poeta. João do Vale ainda trabalhava como ajudante de pedreiro quando ouviu a gravação sendo tocada na rádio. João vibrou e comentou com quem estava ao lado dele: “Essa música é minha, sabia?”, teria dito. Mas quem acreditaria naquele sujeito, sujo de massa e coberto de poeira, negro, pobre, nordestino?
Aqui, Amelinha divide a gravação com ele:

A gostosa “Pipira” é outro ‘causo’ bem-humorado cantado por João. Descreve o jeito ingênuo e fofoqueiro do povo comentar a gravidez extemporânea de uma mulher. Nara Leão está impecável no dueto com João do Vale.

Após morrer no anonimato e na miséria em 1996, o compositor de “Pisa na Fulô”, “Matuto Transviado”, “Peba na Pimenta” será sempre lembrado, pelo menos por mim, como um dos maiores talentos que este Brasil produziu até hoje.