Pra quem odeia, o que dói mais é o sorriso
Pra quem odeia, o que dói mais é o sorriso

 

Pingos nos is: na essência, o que houve no Leblon na noite da segunda-feira não foi bate-boca.

E sim intimidação e provocação de um grupo de jovens adultos contra Chico Buarque, 71, e amigos com quem o artista passeava, depois de jantar.

Chico estava na dele.

O ato hostil decorre do que na cachola de intolerantes constitui delito de opinião.

A, B ou C? É o de menos. Poderia ser qualquer uma. O crime é ter e expressar opinião diversa.

“Você gravou um vídeo apoiando a Dilma”, disse em tom acusatório um dos participantes do cerco.

Diante da agressividade, Chico tentou esgrimir ideias. Pode-se concordar ou divergir dele. O inaceitável é levar uma dura por acreditar nisso ou naquilo.

O compositor que criou uma canção falando “no tempo da delicadeza” escreveu sobre um porvir que parece cada vez mais alucinação utópica.

“Você é um merda”, berrou um sujeito para ele.

A desqualificação do interlocutor é característica autoritária. O mal não é apenas o que o outro pensa, mas o outro. No fundo, trai a indigência de argumentos.

“Vai correr daqui já?”, urrou um valentão de ópera-bufa.

Como Chico é Chico, enquanto rostos vincados pelo ódio o miravam, ele reagia com sorrisos. Para quem odeia, o que dói mais é o sorriso.

Retrato do Brasil, os insultos no Leblon são herança de nossas raízes.

Não somos a terra de gente cordial, mas onde a escravidão foi mais longeva, onde a desigualdade obscena campeia, onde depois de vencidos adversários são decapitados (de Canudos ao Araguaia, passando pelo cangaço).

Os intolerantes de anteontem aparentemente não querem cortar a cabeça de ninguém.

Talvez somente arrancar as cordas vocais. Pensar até pode. Falar seria prerrogativa de quem pensa igual.

O surto na noite do Rio têm outras ascendências. Na Alemanha da década de 1930, os nazistas perseguiam também quem ousava dizer não.

Os intolerantes da segunda-feira formam no que um protagonista do Brasil republicano ironizava como “a turma do Jockey”. Núcleos de grã-finos que pretendem impor a qualquer preço ideias e interesses.

Outro traço distintivo é a vulgaridade de certa elite, como contemplado no vídeo que nasceu como documento histórico e antropológico (para assisti-lo, é só clicar aqui).

Já de início a abordagem a Chico Buarque foi vulgar, tomando árvores pela floresta: “Todo mundo era seu fã, Chico”.

Um dos intolerantes, Alvaro Garnero Filho, é rebento do empresário Alvaro Garnero.

O pai “confirmou a presença do filho no episódio” e “disse que teve de explicar a Alvarinho quem era Chico Buarque“.

Quer vulgaridade e ignorância maiores que um marmanjo com acesso à educação e à cultura precisar de explicação, no século 21, sobre quem é Chico Buarque?

O milionário Alvaro Garnero é um dos herdeiros do grupo Monteiro Aranha.

A nau da intolerância guarda lugar para os ressentidos.

O mesmo indivíduo que chamou Chico Buarque de “merda” falou: “Para quem mora em Paris, é fácil”.

Vacilou: “Você mora em Paris, não mora?”

Chico mora ali pertinho, no Leblon.

Logo outro provocador emendou “Tem um apartamento lá em Paris. É gostoso Paris, né?”

A bronca com o apê de Chico em Paris é o vômito dos ressentidos.

No Marais ou na Île Saint-Louis, o autor de “Vai trabalhar, vagabundo” o comprou com dinheiro ganho honestamente.

Ao contrário de alguns brasileiros donos de imóveis na Europa, não recebeu de herança seu apartamento. E se tivesse?

Adquiriu-o com a grana suada do seu trabalho.

Qual o problema? Os fascistoides agora viraram partidários da propriedade coletiva?

De uma parte deles, Chico é alvo do ressentimento comum a determinada classe média que abomina pobre e inveja rico.

Nesse caso, merda é a inveja.

Para os ricos-ricos, Chico é um traidor. Traidor de classe.

Como pode um cidadão que vive no Leblon e tem apê na França não votar como a esmagadora maioria dos endinheirados?

Soa como exigência de fidelidade de classe. A diferença equivale a traição.

O silêncio sobre o comportamento primitivo e intolerante é conivente.

Vale o clichê: quem cala consente.

Não está em jogo, enfatizo, o mérito das opiniões de Chico Buarque, mas o direito democrático de manifestação dele e de todos os brasileiros.

Muita gente ralou para que opinar não resultasse mais em cana e castigo.

Só o que faltava era um bando furioso de intolerantes e ressentidos levar a melhor em sua cruzada obscurantista, rancorosa e vulgar. (Jornalista Mário Magalhães)