Marceu Vieira é jornalista, compositor, ficcionista e cronista do cotidiano.

Iniciou-se no jornalismo na extinta “Tribuna da Imprensa” e seguiu na profissão, sempre repórter em tempo integral, nas redações de “O Nacional”, “Veja”, “O Dia”, “Jornal do Brasil”, “Época” e “O Globo”.

Hoje, é jornalista independente.

Marceu é quem nos presenteia com esse texto maravilhoso, tão elucidativo sobre a crise política brasileira.

É preciso lê-lo.

 

Cunha e Temer

O Brasil que vai acordar na segunda-feira de manhã

  – Marceu Vieira

 

Certa vez, quando eu ainda não tinha idade pra compreender coisas assim, uma mulher mais velha e inalcançável me ensinou que ternura não é igual a amor. Nem igual a paixão ou desejo ou mesmo banzo.

“Ternura é ternura”, ela me disse, quase imaculada, querendo me fazer crer que a ternura é o mais singular dos sentimentos.

“Ternura é como picada que contamina. Uma sensação que logo se esvai, mas insemina dentro de você alguma coisa, quem sabe pra sempre.”

Hoje eu sei que é preciso passar da metade da vida pra se entender a matemática do tempo. Tempo é como ternura. Só depois que passa e nos contamina consegue nos fazer aprender o valor dos segundos no seu tique-taque incessante, seus segredos, seus códigos, suas mensagens.

Os últimos 27 anos, por exemplo, passaram rápido como navalha na minha carne. Passaram rápido como gozo que nos crispa a expressão e modifica os sons do nosso corpo na brevidade do seu acontecimento.

Assim foram os últimos 27 anos, com tudo que puderam conter – meus beijos e carícias dados e recebidos, minhas dores e meus pavores, minhas perdas e meus ganhos, minhas feridas e meus contentamentos. Os grandes e os pequenos acontecimentos.

Vinte e sete anos são o tempo que passou tão breve no Brasil desde a primeira eleição pra presidente da República, depois dos 21 de ditadura militar. Primeira eleição presidencial da vida de tanta gente. Primeira da vida de milhões de brasileiros. Primeira da minha vida, do jovem que eu fui, tão cheio de sonhos de futuro.

Há 27 anos, ainda estava fresca na minha memória e no meu coração a tinta da lembrança do show do 1° de Maio de 1981, no Riocentro, aquele mesmo, o da bomba, quando o adolescente que eu era saiu de Morro Agudo pra assistir à cena do quase-atentado ao chegar ao estacionamento com os amigos Severino e David.

O nosso medo. A correria. O Puma cinza metálico explodido. As vísceras expostas do capitão Wilson Machado. A gente sem entender nada direito. A gente entendendo tudo.

Há 27 anos, ainda mais fresca estava a tinta da recordação do jovenzinho que se posicionara no meio da multidão do Comício das Diretas, na Candelária, naquele 10 de abril de 1984, eu já estudante do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense, o meu querido Iacs. 

Ferida e gozo. Tanto gozo e tanta ferida de lá pra cá.

O Brasil que elegeu Fernando Collor, há 27 anos, quando eu já era jornalista e trabalhava no “JB”, não é o mesmo hoje. Nem “JB” há mais.

Nem são os mesmos, hoje, os meninos e meninas de caras pintadas que, naqueles dias, ganharam as ruas e ganharam mais as ruas e mais um pouco as ruas e um pouco mais e ainda mais e ainda mais até conseguirem o impeachment do presidente escolhido por muitos de seus pais e mães.

Aqueles meninos e meninas de ontem são os pais e mães de agora, e já não se sabe mais o que querem, o que pensam eles e elas e seus filhos e filhas, aonde todos querem chegar. Parecem uma multidão dividida. Metade não quer o impeachment de Dilma. Metade quer.

O que a metade ansiosa pelo impeachment espera do Brasil que vai acordar na segunda-feira, 27 anos depois da primeira eleição presidencial pós-1964? Espera que a posse do vice Michel Temer determine o fim da roubalheira? Temer, um político sem voto, que só conseguiu o mandato de deputado federal, em sua última disputa, em 2006, graças ao quociente eleitoral do seu PMDB, em São Paulo? Essa metade espera a prisão do Eduardo Cunha? Espera a volta dos tucanos?

Ou espera apenas a imolação de Dilma pra punir Lula e o PT por terem traído e corrompido seu discurso? Isso é justo?

Quando Collor passou por processo igual, a Constituição de 1988 ainda não havia completado quatro anos. Collor foi afastado quando se comprovou que suas despesas particulares eram pagas com dinheiro arrecadado num esquema imundo de corrupção montado por seu ex-tesoureiro de campanha Paulo César Farias.

E Dilma, o que roubou? A esperança de alguns? Quem sabe até a minha? Mas isso lá é motivo pra impeachment, pra uma decisão tão grave e capaz  de dividir ainda mais as duas metades do país já tão exaltadas?

Duas metades que se sabe lá o que vão fazer uma com a outra a partir da segunda-feira de manhã. Ou talvez já na noite deste domingo.

Vinte e sete anos depois, o Brasil está melhor. Até quem não gosta ou já gostou e não gosta mais do Lula e do PT precisa reconhecer. Hoje, os pobres conseguem comer mais. A fome e a miséria estão domadas. A desigualdade é menor. Todos os setores da enorme composição da sociedade brasileira, com seus agentes econômicos e políticos, ganharam mais. Até quem não devia ganhou mais. Sabemos quem.

Dilma faz um governo ruim que ficou pior com a crise incendiada por Eduardo Cunha e seus iguais. Num sentido mais do que figurado, ele, sim, Cunha, parece ter cometido um crime de responsabilidade contra a Nação ao aceitar, como presidente da Câmara, a abertura deste processo sem dolo que o justifique.

E os deputados que o ajudam a se vingar de Dilma, dizendo “sim” ao impeachment, são seus coautores e deveriam todos, de alguma forma, também ser punidos por isso. Eles, sim.

Este processo parou o Brasil. Agravou o desemprego. Comprometeu ainda mais a economia. Separou amigos. Esgarçou ânimos. Incentivou as baratas e os ratos com mandato que infestam o Congresso Nacional. Aumentou a febre dos que não têm voto em seu desejo doente de poder.

Fez mal até mesmo à TV Globo, que, tanto tempo depois de ter iniciado uma reformulação de imagem, está aí de novo prisioneira dos versos entoados nas manifestações. “O povo não é bobo…”

Dilma cometeu pedaladas fiscais que permitiram fingir que estava tudo bem com o Brasil, e assim se reeleger. As tais pedaladas, segundo o Tribunal de Contas da União, foram cometidas pra financiar, entre outras coisas, o Bolsa-Família, o Minha Casa Minha Vida e a redução de juros pra geração de empregos.

Isso é errado? É. Mas todos os seus antecessores não fizeram igual – inclusive FH e até mesmo Lula? 

E por que eles não sofreram processo de impeachment? E não foi também o que fizeram 16 governadores? E por que também eles, governadores, não passam por constrangimento assim?

A democracia brasileira, devolvida do cárcere onde foi mantida por 21 anos à custa de muito sofrimento, muito sofrimento, precisa de cuidado neste momento grave. Seu resgate não teve preço. Nem toda a bufunfa que estaria na Suíça em supostas contas de Eduardo Cunha seria capaz de pagar por ela.