Entrevista 2

 

 

 

 

Gerson Nogueira 1Gente boa até demais, como diz um velho amigo, o jornalista Gerson Nogueira faz de sua profissão uma verdadeira profissão de fé    – perdoem o jogo de palavras.

Tendo como grande defeito torcer pelo Botafogo (tem todas características para ser um flamenguista da gema), Gerson nasceu na querida cidade de Baião, às margens do rio Tocantins, e por alguns anos ocupou a diretoria de Redação do Diário do Pará.

Na labuta diário, Nogueira carrega uma agenda preenchida por diversas obrigações.

Colunista do caderno Bola desde junho de 1998, é também comentarista da Rádio Clube do Pará e do programa Bola na Torre (TV RBA).

Cobriu as Copas do Mundo de 2006 (Alemanha), 2010 (África do Sul) e 2014 (Brasil) para o DIÁRIO, DOL, RBATV e a Rádio Clube.

Trabalhou, como repórter e editor, em todos os grandes jornais de Belém.

Coordenou o jornalismo da TV Cultura do Pará, de 1987 a 1989.

Dirigiu a redação da TV RBA, de 1989 a 1996, e, para “passar o tempo” entre uma jornada e outra, escreve o blog Gerson Nogueira, um dos mais acessados do Estado.

Amante do cinema e da literatura, Gerson tem outra admirável virtude: ama o rock and roll.

É com ele a entrevista desta semana, cumprindo a programação alusiva aos 10 anos deste blog, que seguirá até o final de 2016, semanalmente publicando entrevistas com profissionais da imprensa, do rádio e blogosfera.

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Nascido em Baião, município que territorialmente já foi o maior do Estado do Pará, fincado nas ribanceiras do Tocantins, você tem alguma recordação do tempo juvenil quando o porto de sua cidade era uma das paradas obrigatórias dos grandes barcos carregados de castanha que deixavam Marabá rumo a Belém?

– Guardo a lembrança visual dos “marabaenses” . Era assim que nós, moleques, chamávamos as embarcações que faziam a rota no rio Tocantins, entre Marabá e Belém, transportando castanha. Eram embarcações a motor que também tinham velas imponentes, muito mais por razões estéticas. Vinham rebaixadas, quase ao nível da água, pela carga que carregavam nos porões. Em algumas ocasiões, na parada desses barcos em Baião, eu costumava entrar no barco para vender doces e pastéis. Tinha uns 10, 11 anos de idade, estudava pela manhã e no período da tarde ajudava minha avó Alice (que era quituteira gabaritada) fazendo pequenas vendas de rua.

O ciclo da castanha teve forte influência na vida econômico de Baião?

– Sim. Representou um incremento a mais no aspecto do extrativismo, principal força econômica de Baião desde o século 18.Em alguns distritos, como Joana Peres e São Joaquim do Ituquara, havia grande produção de castanha. Muitos enriqueceram com o ciclo, até meados de 1970, mas depois sucumbiram também à falta de preservação dos castanhais.

 

Como aconteceu o seu primeiro encontro com o jornalismo?

– Terminei o curso ginasial em Baião e fui trazido por meu pai, José, para complementar estudos em Belém. Trabalhei inicialmente como auxiliar de escritório numa firma localizada na avenida Presidente Vargas. Lá, através de amigos, soube de uma vaga para digitador no jornal O Liberal. Fui, fiz o teste e fiquei. Em 1977, quando surgiu uma vaga na redação, me habilitei e fui aprovado. O diretor de Redação era Cláudio de Sá Leal. A secretária de Redação era Ana Diniz. O chefe de reportagem era Anselmo Gama. Uma das principais redatoras era Regina Alves, com quem tive o imenso privilégio de aprender as primeiras manhas do ofício. Cobri inicialmente Polícia, que era um setor-laboratório para focas e devo a isso um aperfeiçoamento do texto, a partir de relatos diários sobre ocorrências e dramas humanos. Fui setorista da Assembleia Legislativa e, em seguida, passei a editar Esportes, por uma questão natural. Sempre fui ligado à área esportiva, desde menino lá em Baião. Participei lá da primeira greve de jornalistas do Pará, ao lado de companheiros da redação e dos demais veículos de Belém. Trabalhei na cobertura da visita do papa João Paulo II, indo até a colônia do Prata, juntamente com o repórter Agenor Garcia e o lendário fotógrafo Pedro Pinto. Em seguida, deixei o Liberal e fui para a TV Cultura (então presidida por Francisco Cézar) chefiar o Jornalismo, a convite de Afonso Klautau, a quem devo ensinamentos preciosos sobre a natureza da profissão. Foi meu primeiro contato com televisão e a paixão foi instantânea. De lá, fui chamado por Jair Bernardino para estruturar e dirigir o Jornalismo da TV RBA, em 1989. Implantamos um modelo forte de cobertura da cidade, com ênfase no jornalismo comunitário e abertura de interação com a população mais pobre. O “Barra Pesada”, idealizado e criado por mim, foi o principal e visível braço dessa estratégia. Em seguida, criamos o “Camisa 13”. Os dois programas conquistaram grandes fatias de audiência e até hoje estão no ar. Além de atrações no formato revista, lançamos quatro telejornais diários – peripécia até hoje não igualada no telejornalismo local. Jair, neófito na atividade, foi um visionário, queria fazer de sua emissora de TV uma referência na Região Norte pela qualidade do conteúdo. Quase conseguimos. Sua morte interrompeu o projeto original.

 

Fale um pouco a respeito de sua experiência com o diretor de Redação do Diário do Pará.

– Da RBA fui trabalhar na Província do Pará, a convite de meu grande amigo Antonio José Soares. Considero este um presente típico dos atalhos da vida. Passar pela icônica redação que teve Euclides Chembra Bandeira, Edwaldo Martins e Porfírio da Rocha enriqueceu meu currículo profissional, permitindo ainda conviver/aprender com outros colegas, como Jaime Bevilacqua, José Miranda, Gabriela Athias e Carlos Rocque. Em 1998, dias antes da estreia do Brasil na Copa da França, recebi convite – transmitido por Mauro Bonna – de Jader Barbalho Filho para conversar sobre um novo projeto na área esportiva, que ele pretendia lançar no Diário do Pará. Fui lá conversar, gostei do que ouvi e aceitei assumir a edição do tablóide “Bola”, que logo caiu nas graças do público leitor, contribuindo para o crescimento do jornal. Em 2004, fui convidado para assumir a direção de Redação em substituição ao meu amigo Guilherme Barra, que estava de saída. Em 2006, o Diário assumiu a dianteira em número de leitores e tiragem no Pará, desbancando o então líder absoluto O Liberal – posição mantida até a presente data. Foi um dos grandes feitos da história recente do jornalismo impresso no Estado, a partir do firme direcionamento dado por Jader Filho, que investiu em formação de pessoal e permitiu a montagem de uma equipe afiada e extremamente competente.

Como você passou a atuar na equipe de comentaristas esportivos da Rádio Clube?

– Na Copa do Mundo de 2006, cobri a Seleção Brasileira nas andanças pela Alemanha. Foi minha primeira atuação como correspondente internacional. Mandava matérias diárias para o caderno Bola e participava, como convidado e ‘penetra’, dos programas da Rádio Clube transmitidos a partir de Munique e Frankfurt. No dia da grande final entre Itália e França, por sugestão do grande Carlos Castilho, meu amigo-irmão Guilherme Guerreiro me escalou para atuar nos comentários, ao lado justamente de Castilho. Nem preciso dizer do prazer de estar ali, ao lado de pessoas que sempre admirei. Cacá era um dos analistas que eu escutava ainda em Baião nas tardes de domingo, ligado no rádio, junto com meu pai José. A partir de então, Guerreiro me incluiu no time oficial da Rádio Clube, onde permaneço até hoje, além de participar aos domingos do programa Bola na Torre (RBA).

 

Remo, Paysandu, seu time de coração?

– Botafogo, de João Saldanha e Nilton Santos. Desde que me entendo por gente, aprendi a amar a Estrela Solitária, com direito a todos os sofrimentos decorrentes disso rsrs… Meu pai José é vascaíno (e tunante), mas eu encantei com o então Botafogo de Manga, Jairzinho, Gerson, Paulo César, Rogério e Roberto Miranda. Tenho o imenso orgulho de torcer por um dos clubes mais importantes da história do futebol. Aliás, costumamos dizer que não se escolhe torcer pelo Botafogo, o Botafogo é quem nos escolhe. Com os times paraenses, minha relação é de distanciamento crítico. Procuro analisar jogos e cenários sem me deixar contaminar pelos uivos da rua, sempre encharcados de paixão.

 

Em sua opinião, quais as características de um bom repórter?

– Senso de observação, honestidade para relatar os fatos e informação suficiente para entender todos os lados do assunto em pauta. Parece simples, mas requer boa formação e um faro especial para perceber onde está a notícia. É claro que o jornalismo moderno atropelou – pela pressa industrial que envolve o processo de apuração – muito dessa prática, daí alguns estrupícios que testemunhamos diariamente nos jornais, na TV e nos sites de notícias. Ao mesmo tempo, as facilidades criadas pelas plataformas digitais vêm reforçar o arsenal de recursos à disposição dos bons repórteres. Há quem entenda que o Google induz à preguiça; eu discordo: pode ser de imensa valia para quem gostar de prospectar informações.

 

Existe algum trabalho que te trouxe frustração por ter saído abaixo de suas expectativas? Qual?

– Talvez a não efetivação da Escola de Jornalismo do Diário do Pará, projeto de formação a que nos dedicamos durante quase três anos, mas que infelizmente acabou extinto. Durante sua curta existência, sob a coordenação direta e extrema dedicação do jornalista Lázaro Magalhães, conseguimos formar pelo menos duas turmas de repórteres. Situações alheias à nossa vontade interromperam o projeto.

Programas sensacionalistas ocupam cada dia mais a programação das emissoras de TV, tanto pela audiência quanto pelo retorno financeiro. Fosse feita uma proposta para você compor a equipe de um programa tal, como lidaria com o desafio?

– Só aceitaria se tivesse plena autonomia para colocar o povo, de fato, na TV, sem apelações rasteiras ou truques baratos. Sem a defesa apaixonada de pena de morte e outros descalabros do pensamento conservador. Sem a preocupação bovina de santificar a Polícia, criando falsos heróis. Sem demonizar pretos, pobres e putas, acentuando velhos preconceitos. Creio ser possível formatar um produto jornalístico honesto, usando os recursos que a TV ainda permite e apostando alto na grande reportagem – sim, ela (ainda) não morreu. Duvido, porém, que alguém se interesse pelas ideias e formulações de um velho escriba de esquerda.

 

Quais foram seus maiores aprendizados em sua trajetória no rádio e na TV?

– O rádio me levou ao necessário exercício da simplificação da mensagem. Da inutilidade do falar clássico e pomposo. Do triunfo da linguagem coloquial, oriunda das ruas. Na TV, aprendi a conviver com a instantaneidade da notícia, antes mesmo do advento da internet. Como editor de telejornais, me acostumei a lidar com a carpintaria de matérias editadas em frações de segundos e descobrir as nuances dos frames. É meio atordoante, mas as pequenas vitórias diárias compensam plenamente.

Quando você iniciou no Jornalismo, ainda havia resquício da censura imposta à imprensa pela ditadura militar?

– Sim, no período em que trabalhei no Liberal, ainda sob o regime militar, tínhamos diariamente contato na Redação com situações de censura ou restrição a matérias, principalmente relacionadas com atividades sindicais e movimentos sociais. A repressão não era exercida de forma ostensiva, mas deixava rastros entre os profissionais pela tendência natural à auto-censura. Nesse período, é bom dizer, jornalistas se caracterizavam por um posicionamento claramente progressista, talvez em função dos limites impostos pela ditadura e os relatos das perseguições movidas a colegas mais antigos. O tempo viria mudar drasticamente essa realidade, a ponto de se ver hoje uma geração inteira de profissionais extremamente alheia à cena política, preferindo o conforto incômodo das meias palavras e da dissimulação até mesmo diante de flagrantes ameaças às liberdades democráticas, como se vê agora. Incomodado com isso, decidi há seis anos criar um blog e passei a participar ativamente dos debates nas redes sociais e atos de cidadania. É uma maneira de expor livremente meu pensamento e minhas inquietações.

Você viveu algum momento de ter o seu trabalho censurado?

– Não que eu tenha visto acontecer explicitamente, mas tive motivos para desconfianças em relação a matérias sobre as agitadas sessões da Assembleia Legislativa entre 1979 e 1981, ricas em discussões entre políticos de notório posicionamento à esquerda, como Paulo Fonteles e João Batista.

Na blogosfera, o seu blog é um dos mais acessados no Estado. Como tem sido sua experiência de blogueiro?

– Tem sido uma das mais gratificantes experiências permitidas a um jornalista sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior (thanks, Belchior). Fui um dos primeiros da minha geração a apostar nessa janela que se abria para quem sempre sonhou veicular seu pensamento sem as amarras naturais da relação trabalho-capital. Posso escrever sobre tudo o que gosto – política, jornalismo, futebol, rock, cinema, HQ, comportamento etc. – sem que ninguém me encha o saco ou meta o bedelho no conteúdo. No blog, não sigo ordens; não me submeto aos medíocres de plantão e nem me preocupo com as ações sabotadoras de certa massa ignara, tão frequentes em certos níveis da atividade humana. Enfim, é o exercício dessa tal liberdade, tão cara a todos nós e que um grupelho de canalhas está tentando solapar a todo custo, sob a complacência covarde de alguns jovens e velhos navegantes.

Como você analisa a cobertura da grande imprensa nacional em relação às questões políticas?

– Terrivelmente parcial, engajada e comprometida com os grandes interesses corporativos, empresariais e elitistas. A grande mídia nacional sempre foi preocupada com os homens de bens, nunca com o cidadão de bem. Seu comportamento seletivo, escancarado na atual crise, é apenas revelador dos humores da plutocracia brasileira, reconhecidamente uma das mais maléficas do mundo. As recentes ações revelam a face mais cruel deste lado nem sempre visível a olho nu. Durante séculos, a casa grande mandou na senzala, sem que esta ousasse se rebelar. Este estado de coisas, sedimentado por uma cínica e conveniente acomodação de interesses, serviu como modelo ideal de perpetuação no poder. Não por acaso, o Brasil vivenciou apenas pequenos espasmos democráticos, sem jamais solidificar suas instituições. Temos uma vergonhosa tradição de conchavos, com acordos de gabinetes a moldar ambições – ao contrário de nossos irmãos uruguaios, argentinos e chilenos, bem mais refratários às conciliações hipócritas. O que se vê hoje nas ruas, explicitado nos gritos reacionários e fascistas de certa faixa da população, nada mais é do que o resultado de séculos de dominação dos senhores de engenho sobre os escravos de sempre. Aí, há exatos 13 anos, alguém resolveu se insurgir contra tudo isso, lançando programas sociais para combater a avassaladora miséria nacional, as elites se eriçaram e passaram a esperar o momento de mostrar os dentes. Quanta ousadia dos pé-rapados, como se apelidava a ralé antigamente. E veja que era só um naco subtraído do gigantesco manancial da casa grande. Acontece que eles não aceitam perder absolutamente nada. Enquanto não conseguirem desterrar os “audaciosos” Lula e Dilma, condenando-os ao inferno (ou mandando pra Cuba!), não sossegarão o facho. Que ninguém se iluda: o festim diabólico contra a presidente da República não visa extirpar a corrupção – ela é combatida não por seus erros, mas pelos muitos acertos. A nós, jornalistas que militamos na grande rede, resta resistir a esse rolo compressor da midiazona sobre corações e mentes. Pela origem que tenho, orgulhosamente nascido de uma família pobre e honrada, entendo essa resistência como dever de um cidadão esclarecido.