“O que quero dizer mesmo é que o homem nasceu sozinho, embora se junte, se agarre, mas nunca consegue escapar da solidão, são as solidões aglomeradas que se formam e se desfazem, porque na verdade a solidão é o nascimento, a vivência e a morte”. (Paulo César Pinheiro)

Tive uma juventude umbilicalmente ligada a música de Paulo César Pinheiro. Muitos porres em bares de Belém, Marabá, Goiânia (ao lado do saudoso Osorinho Pinheiro que se foi aos 23 anos), Rio de Janeiro, Imperatriz, e tantas outras cidades…
No auge duro mesmo da ditadura, P.C Pinheiro chegava para nos passar mensagens diretas, driblando os rigores da censura criminosa.

Na letra de Mordaça, dele e de Eduardo Gudin, tudo o que a gente queria ouvir. Um desabafo nas madrugadas frias contra o regime militar a sufocar nossa juventude.

Tudo o que mais nos uniu separou

Tudo que tudo exigiu renegou
Da mesma forma que quis recusou
O que torna essa luta impossível e passiva
O mesmo alento que nos conduziu debandou
Tudo que tudo assumiu desandou
Tudo que se construiu desabou
O que faz invencível a ação negativa
É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta
O interior todo se revolta
E faz nossa força se agigantar
Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva
E a felicidade amordace essa dor secular
Pois tudo no fundo é tão singular
É resistir ao inexorável
O coração fica insuperável
E pode em vida imortalizar

Gilvan Barreto amava Mordaça. Não dava pra ficar cinco minutos numa mesa de bar tocando violão, logo vinha ele:

É provável que o tempo faça a ilusão recuar
Pois tudo é instável e irregular
E de repente o furor volta

Ele só sabia esse trecho. O resto, pinicava invenções deixando o restante da turma em polvorosa:

Porra, além de desafinado não sabes decorar uma música!

Verdade. Gilvan Barreto, nascido em Itupiranga mas com vasta bagagem de Rio de Janeiro, pinta de carioca por causa do jeito só dele malandro de viver gostosamente. Péssimo para gravar letras de canções. E o mais desafinado de todos.

Ou então, uma frase preferida dele, sempre que os garçons inventavam de querer fechar os bares.

– A noite é uma criança…

Chico Buarque embalava a gente com a lindíssima Olé,Olá

Gilvan só sabia a letra de um trecho do sambinha de Buarque: Que a noite é criança / que o samba é menino / Que a dor é tão velha que pode morrer / Olê, olê, olê, olá..

O resto era tao-somente lala-rara…

Bastava um garçon iniciar o movimento de recolher mesas que a gente sabia do aviso terrivelmente ácido, para nós boêmios de toda noite:

Senhores, vamos fechar daqui a pouco…

O irriquieto Gilvan virava-se, com voz empostada, e soltava a mesma frase , a nos empapuçar de risos:

A noite é uma criança. Que isso, parceiro!

Mas vá explicar isso para um garçon, que “a noite é uma criança…”

Outra música também de Paulo César Pinheiro mexia de vez em quando com a alma do amigo. Como ele não sabia o nome da composição, virava-se pra mim com seu jeito carinhoso de me tratar:

Cunhado, canta o “corpo da mulher..”

Reagiam todos:

Gilvan, de novo? É do Paulo César Pinheiro e chama-se “Violão”…

Quase sempre quem dava em cima do amigo era Osorinho, seu mais dileto chegado. Bronca dura que só deixava Gilvan em risos, longas risadas…

Imagina a cena: invariavelmente, cinco amigos (eu, Osorinho, Gilvan, Pedro Paixão e Janary), ligeiramente bêbados (quase sempre, totalmente), às 4h da manhã, sentados num barzinho, daqueles que têm música ao vivo, e onde eu era o cara que dava a canja. Só a gente no bar.

Os garçons em volta da mesa falando sobre como era demorada a volta para a casa. Uma tentativa clara e mesquinha, há de concordar, de tentar convencer os amigos a ir embora.

E aquela história de ficar aberto até o último cliente ir embora?

Mas os senhores são a última mesa. E a penúltima foi embora há duas horas, junto com o cozinheiro.

Já faz tanto tempo assim? Espera: o cozinheiro já foi?

Já sim. Mas os senhores podem ficar à vontade.

Osorinho, do grupo o que sempre sobrava dinheiro no bolso, cuidava de esticar a onda dos caras.

Louco pra amanhecer o dia, sem pagar nenhuma (era sempre assim), Gilvan chegava junto a mim e falava ao ouvido, baixinho:

Maior é Deus, Maior é Deus..Depressa…

Era a senha para deixar Osorinho na maior pira. Ele amava a canção de Paulo César Pinheiro. Aliás, “Maior é Deus” e “Viagem.

Com o cuidado para não deixar transparecer ao colega a sugestão de musica como uma forma de lhe “dar corda”, eu pegava o violão que estava ao lado de minha cadeira – invariavelmente sobre um tamborete que eu sempre levava (ainda não havia àquele época o descanso de violão) -, e puxava o samba:

Osorinho levantava-se rapidamente, empolgado, e dirigia-se a cada garçom, colocando em suas mãos generosos trocados.

Pronto, estava garantida a nossa chegada até o sol raiar.

Uma vez, estávamos no Bar do Caparaó – peixaria montada em Marabá em 1972 por um capixaba gente fina – e os garçons, por volta de 3 horas da matina, começaram a assanhar o fechamento de mesas e recolhimento de cadeiras.

Ó, meu, já?

Já o quê, Gil?

Já vão fechar essa jeringonça? Nem bem começamos…

Nada, só estamos arrumando pra facilitar nossa saída quando fecharmos. Podem ficar à vontade!

Como ficar à vontade com vocês secando a gente?

Ninguém ficava sem rir das reações de Gilvan.

E assim a gente varava mais uma madrugada, beijando a saia do dia.

Que estava sempre ali, belíssimo, na vermelhidão do sol a surgir em algum ponto da cidade.