Manhã de domingo

 

(*)       – Elias Ribeiro Pinto

1 Como havia tomado apenas uma garrafa de vinho e três chopes no sábado, resolvi encarar uma caminhada na manhã de domingo, a fim de arejar as ideias. Calma. Garrafa é exagero. Foi apenas uma demi-bouteille.

2 Ao pôr um pé na rua (o outro ainda estava no ar), um alarido me saúda. O segurança da rua (não vá me dizer que a sua rua não tem um segurança particular?) comenta algo com vizinhos. Meto minha colher no assunto (e resisto em pedir uma xícara de açúcar demerara à vizinha).

3 Inteiro-me dos fatos: ao chegar há pouco em seu carro para a missa matinal na Trindade, um senhor nem tem tempo de desligar o carro; uma dupla de assaltantes o domina e, sob a mira de um revólver, leva motorista e veículo. “Outro dia assaltaram um casal de namorados aqui na praça”, emenda o segurança, que quase sempre tem um causo para contar. Eu mesmo, dias atrás, acordei com uma pancada ecoando na madrugada. Era um conhecido pilantra das redondezas estourando, com uma pedra, a janela do carro que um morador bobeara e deixara na rua, quase sob a minha janela.

4 Bem, de qualquer maneira, nenhuma novidade no front da bandidagem belenense. Vamos em frente, na nossa saudável caminhada dominical. Depois de me benzer (esquecendo casuisticamente do meu ateísmo), mal dobro a esquina de casa, subindo pela Silva Santos, uma dupla de rapazes fortinhos vem em direção contrária.

5 Os olhos injetados indicam que eles beberam um pouquinho mais que meia-garrafa de vinho e três chopes. Levo a mão ao cós lateral do calção como quem coça, displicentemente, o cabo de um revólver (nenhuma alusão sexual, faz favor). Um deles para e me dirige a palavra. Tento manter a situação sob controle, em vez de desembestar rua acima, como se tivesse sido dada a largada dos 100m e eu fosse o Usain Bolt.

6 O cara me fala que não vai negar, tomaram umas e tantas, e aí alguém levou a grana que tinham e pergunta se, por caridade, eu não teria alguns trocados para lhes auxiliar, feito Ulisses, no retorno ao lar e à Penélope de cada um. Respondi que, infelizmente, havia deixado minha carteira em casa, pois saíra para apenas esticar as canelas (torci para que entendessem isso no sentido figurado, ou literal, sei lá, de quem sai apenas para exercitar os músculos da perna). Aconselhei-lhes uma das minhas receitas contra a ressaca e segui incontinenti (que não se leia “incontinência”) adiante, sem esperar para saber se haviam anotado todos os ingredientes da receita.

7 Atravessei a Praça da República, já tomada de protestos contra a matança de cachorros marajoaras, distribuição de folhetos e discursos em altos decibéis, entrei pela Tiradentes, quebrei pela Piedade, e enveredei Aristides Lobo adentro. Mais adiante, encontro uma turma de amigos, ainda mais matinais que eu, que estendiam uns banquinhos na calçada de um bar, esticando não as canelas, mas a farra. Com certeza, pareciam ter bebido bem mais que meia-garrafa (possivelmente de cachaça) e três chopinhos. Tentei passar sem dar na vista, envergonhado da minha sobriedade numa manhã de domingo.

8 Finalmente, na Doca, chego ainda a tempo de assistir ao final da premiação de um amanhecer atlético. Empolgado com o clima de maratona que ainda se respirava, dou umas três voltas ao redor do cocódromo e entro no supermercado para um assalto consentido, protocolar.

9 Na volta para casa, trazendo o pão nosso de cada dia (e tentando lembrar do pai-nosso redentor), esbarro ainda, na esquina da Tiradentes com a Benjamin, com um carro emborcado, com as rodas para cima. O acidente foi há pouco. Nenhuma vítima fatal, me garante uma fiscal, já incomodada com as minhas perguntas, não sabendo que estava diante de um repórter vinte e quatro horas.

10 Vou encurtar os passos e a narrativa, que a linha de chegada da coluna (a do jornal e a do espinhaço) já está à vista. Ao me ouvir abrindo a porta, a voz querida e confortadora da companheira me recebe: “Que tal, querido, tudo bem?”. Fiel aos fatos, respondo: “Tudo normal, amor”. Apenas mais um domingo de rotina.

(*)   – Jornalista, cronista, escritor, colunista do jornal Diário do Pará