De um lado, os defensores intransigentes da música brasileira dita “pura” , representada por Elis Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Edu Lobo e, dizem, até Gilberto Gil (eu, particularmente não acredito nisso, considerando que ele era um dos criadores do Tropicalismo, tendência musical que inseria a guitarra como  sonoridade  imprescindível); de outro, o próprio Tropicalismo de Caetano, Gal, Mutantes, Gil.

O clima entre os antagônicos chegou ao  ápice com a realização da chamada “Passeata contra a Guitarra Elétrica”, em 1967, organizada por Elis e seus seguidores (fotos). O ato simbolizava um movimento em defesa da brasilidade, que tinha na Bossa Nova e no próprio samba de raiz, suas representações maiores.

 

A passeata conseguiu reunir alguns milhares de manifestantes no centro de São Paulo.

Dela, apesar de convidados, não participaram Caetano, Chico Buarque e Nara Leão, que viam naquilo um ato  provinciano descabido e totalmente conservador.

 

A ausência de Chico da manifestação lhe valeria alguns aborrecimentos futuros.

Como também lhe valeria o patrulhamento imposto pela turma do Tropicalismo, tendo à frente Gilberto Gil – seu amigo. Mas indócil defensor de mudanças profundas na estrutura da música brasileira.

Um dos fatos que marcaria as diferenças indisfarçadas entre os aficionados da música engajada e a turma da tradição,  entre eles Chico, ocorreu  nos bastidores do  IV Festival da Música Popular Brasileira, ocorrida em São Paulo, em 1968.

Chico  foi chamado para defender no palco a canção Benvinda (“Dono do abandono e da tristeza/ Comunico oficialmente que há lugar na minha mesa / Pode ser que você venha por mero favor…”), dele e de Tom Jobim, quando os seguidores do Tropicalismo começaram a lhe vaiar.

Há versões de que Gilberto Gil apupava Chico, aos gritos de “superado”, conforme conta, com ressalvas, Wagner Homem, em seu gostoso livro “Chico Buarque”.

Gil negaria isso, em algumas ocasiões, afirmando que se levantara para defender Chico.

O desdobramento desse fato gerou um texto belíssimo de Chico Buarque, até recentemente pouco conhecido, mas resgatado no livro de  Wagner Homem, publicado àquela época no  jornal Zero Hora, intitulado “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”.

O poster reproduz a seguir o texto de Chico, espécie de manifesto ao bom senso e de respeito às artes e à criação.

 

 

“Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”

 

Estava mal chegando a São Paulo, quando um repórter me provocou: “Mas como, Chico, mais um samba? Você não acha que isso já está superado?” Não tive tempo de me defender ou de atacar os outros, coisa que anda muito em voga. Já era hora de enfrentar o dragão, como diz o Tom. Enfrentar as luzes, os cartazes, e a platéia, onde distingui um caro colega regendo um coro pra frente, de franca oposição. Fiquei um pouco desconcertado pela atitude do meu amigo, um homem sabidamente isento de preconceitos. Foi-se o tempo em que ele me censurava amargamente, numa roda revolucionária, pelo meu desinteresse em participar de uma passeata cívica contra a guitarra elétrica. Nunca tive nada contra esse instrumento, como nada tenho contra o tamborim. O importante é ter Mutantes e Martinho da Vila no mesmo palco.

Mas, como eu ia dizendo, estava voltando da Europa e de sua música estereotipada, onde samba, toada etc. são ritmos virgens para seus melhores músicos, indecifráveis para seus cérebros eletrônicos. “Só tenho uma opção, confessou-me um italiano – sangue novo ou a antimúsica. Veja, os Beatles, foram à Índia…” Donde se conclui como precipitada a opinião, entre nós, de que estaria morto o nosso ritmo, o lirismo e a malícia, a malemolência. É certo que se deve romper com as estruturas. Mas a música brasileira, ao contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação. Não se trata de defender a tradição, família ou propriedade de ninguém. Mas foi com o samba que João Gilberto rompeu as estruturas da nossa canção. E se o rompimento não foi universal, culpa é do brasileiro, que não tem vocação pra exportar coisa alguma. Quanto a festival, acho justo que estejam todos ansiosos por um primeiro prêmio. Mas não é bom usar de qualquer recurso, nem se deve correr com estrondo atrás do sucesso, senão ele se assusta e foge logo. E não precisa dar muito tempo para se perceber “que nem toda loucura é genial, como nem toda lucidez é velha.” (Chico Buarque, publicado no Zero Hora 09/12/68)