São válidas as alegações de que o processo de licenciamento para a derrocagem do Pedral do Lourenço contém sérias deficiências, incluindo a falta da Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) às comunidades tradicionais afetadas, bem como o descumprimento de requisitos técnicos exigidos pelo próprio Ibama, a autoridade responsável pela licença.

A verificação foi realizada por meio de uma inspeção judicial conduzida pela Justiça Federal em localidades ribeirinhas na região do Pedral do Lourenção, no sudeste do Pará, e reafirmou as críticas apontadas pelo Ministério Público Federal (MPF) relacionadas às vulnerabilidades e irregularidades dos estudos socioambientais, além da transgressão do direito à Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) das comunidades tradicionais no trâmite de licenciamento das obras para a exploração das rochas e extração de bancos de areia nessa parte do rio Tocantins.

O Ministério Público Federal (MPF) solicitou a interrupção da licença, e a Justiça Federal do Pará acatou essa solicitação, interrompendo a autorização ambiental para o início dos trabalhos.

As audiências públicas foram realizadas nos dias 29 e 30 de setembro, pela Seção Judiciária do Pará, nas comunidades de Santa Terezinha do Tauiry, Vila Saúde e Ilha Pimenteira, além de uma visita à área de Praia Alta, que compõem os municípios de Itupiranga, Novo Repartimento e Jacundá.

Centenas de habitantes ribeirinhos revelaram suas experiências, preocupações e anseios.

A retirada de parte das rochas é essencial para permitir a navegação em um segmento de 35 quilômetros do Rio Tocantins. Contudo, o Ministério Público Federal se manifesta contra a licença ambiental aprovada pelo Ibama, alegando que as comunidades tradicionais e ribeirinhas que habitam a região serão severamente afetadas e não tiveram a oportunidade de se pronunciar sobre os efeitos ambientais e sociais do projeto de remoção.

André Cavalcanti, juiz federal da 9ª. Vara,  esclareceu que a finalidade da Justiça Federal ao convocar a audiência pública era proporcionar aos moradores das regiões que sofrerão as maiores repercussões pela remoção do Pedral do Lourenço a chance de expressarem suas opiniões diretamente ao Tribunal. Ele também explicou que a discussão em questão não seria resolvida naquele instante, mas sim em um momento futuro, fundamentada nas informações obtidas durante a inspeção judicial e na própria audiência.

Um grande número de ribeirinhos, vinculados a diversas associações e organizações que os apoiam, expressou suas angústias em relação aos impactos do projeto de derrocagem, especialmente no que se refere a uma possível diminuição da vida aquática, visto que quase todas as comunidades locais dependem da atividade pesqueira para sua subsistência. Além disso, levantaram questionamentos sobre vários pontos do projeto e afirmaram que uma consulta pública transparente e bem fundamentada é a melhor forma de esclarecer essas questões e garantir a defesa de seus direitos.

Os órgãos que estão diretamente envolvidos no processo tiveram a oportunidade de apresentar suas opiniões durante a audiência. O MPF destacou, em especial, que a derrocagem trará sérios efeitos socioambientais. O Ibama enfatizou que a licença concedida ao DNIT para iniciar as obras em um trecho de 35 quilômetros do Rio Tocantins inclui condicionantes que visam, entre outras metas, minimizar os danos potenciais aos moradores das margens do rio. O DNIT, representado pela empresa DTA Engenharia, responsável pela execução das obras, detalhou aspectos do projeto que buscam proteger as comunidades e atenuar os impactos socioeconômicos do empreendimento.

Na terça-feira (30), juízes da Justiça Federal e membros de diferentes instituições realizaram uma visita a uma parte do Rio Tocantins que está abranger pela autorização concedida pelo Ibama ao DNIT. Nas comunidades de Vila Saúde e Ilha Pimenteira, o juiz federal André Cavalcanti Silva, acompanhado de outros juízes e representantes das entidades envolvidas, participou de diálogos com os moradores ribeirinhos dessas áreas e teve a oportunidade de ouvir as opiniões de diversos deles em relação ao projeto de retirada de rochas.

 

TESTEMUNAS EXPERIENTES

O pescador Josias Pereira de Sousa se opôs claramente à proposta de indenização de um salário mínimo apresentada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), refletindo sobre sua própria experiência. “No mês passado, em setembro, eu estava pescando e posso provar: capturei mais de 3.300 quilos de mapará. Vendendo a R$ 4, obtive mais de R$ 12 mil. Como posso aceitar agora que alguém me ofereça uma quantia irrisória de um salário mínimo?”, indagou Josias, recebendo aplausos durante a audiência em Tauri.

A riqueza e a complexidade do saber tradicional sobre a pesca, assim como a preocupação com sua perda, foram discutidas pela pescadora e liderança da comunidade Pimenteira, Maria Eunice Silva. Ela descreveu as técnicas diferentes empregadas, como a “linha boiada” e a “linha quibada”, além dos tipos de peixes que cada uma visa capturar, revelando um conhecimento profundo que, segundo os moradores, não tem sido reconhecido nas pesquisas oficiais. “Olha, nós pescamos no canal do rio. Depois que uma balsa passa, demora três, quatro, cinco dias para pegar um peixe. (…) Isso vai afetar a alimentação dos nossos filhos. O que nos sustenta é o que tiramos do canal do rio, pessoal. Nossa pescaria de mapará, o que pescamos, é na caceia, usamos a nossa linha boiada. Quando as balsas passam, elas levam tudo, como já aconteceu aqui”, lamentou.

 

FALHAS APONTADAS POR CIENTISTAS

As professoras Cristiane Vieira da Cunha, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), e Rosália Furtado Cutrim Souza, da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), destacaram a inadequação de estudos realizados. “Do ponto de vista metodológico — e tenho experiência em monitoramento de pesca há mais de uma década —, não é viável estabelecer um marco zero em apenas quatro meses de monitoramento. Isso é inviável”, declarou Cristiane Cunha. O termo marco zero refere-se à análise detalhada do contexto antes do início do projeto. Trata-se essencialmente de uma “imagem” das condições ambientais e socioeconômicas da região antes do início das intervenções.

“É verdade que em um período de quatro meses não é possível realizar um monitoramento adequado. A pesca segue ciclos sazonais e a migração dos peixes, e nada ocorre de maneira isolada. Nem os peixes, nem os pescadores estão restritos a um único local. Enquanto os municípios têm suas limitações, a atividade pesqueira não se prende a elas. Os peixes circulam livremente, pertencendo a toda a região, assim como os pescadores, que se dirigem a onde abundância de peixe. (…) E já informei ao Dnit que os efeitos não estarão restritos apenas àquela área. Todos os pescadores que dependem desse ponto serão afetados”, acrescentou Rosália Furtado Cutrim Souza.

A docente Cristiane Vieira da Cunha destacou que o Diagnóstico Socioambiental Participativo (DSAP) foi conduzido de forma inadequada. Das 651 pessoas entrevistadas, 69% eram habitantes da área urbana de Itupiranga. “Isso significa que as comunidades e os pescadores que efetivamente estão presentes na região não foram incluídos nesse levantamento. Essa abordagem criou uma distorção na pesquisa”, enfatizou.

 

IMPACTO AMBIENTAL

De acordo com a pesquisadora, o relatório de impacto ambiental não abordou diversas questões que haviam sido solicitadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Entre esses pontos, estavam: dados gerais sobre o número de pescadores de cada segmento, a descrição das comunidades envolvidas, a presença de pesqueiros, as rotas de pesca utilizadas, a quantidade e a qualidade das embarcações, os métodos de captura, as espécies de peixes visadas, o volume de desembarque médio, o número de pessoas que dependem exclusivamente da pesca, além de outras modalidades de subsistência e diversas outras indagações não respondidas.

Embora o Dnit tenha afirmado que realizaria o registro dos pescadores que atuam na área de influência, independentemente de sua residência, as comunidades manifestaram sérias preocupações, uma vez que todos os projetos de compensação, educação ambiental e preservação de quelônios estão sendo fundamentados no diagnóstico.

uma carência de inclusão e consulta – Ao longo de toda a inspeção, as solicitações mais recorrentes foram voltadas à incorporação, nos estudos socioambientais, de comunidades que até então foram negligenciadas pelo processo de licenciamento, além da exigência de realização da Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI). Representantes de várias localidades, como Cajazeiras, Porto Novo e Pimenteira, relataram nunca terem sido oficialmente notificados sobre o projeto, e ainda menos consultados conforme estipulado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sendo informados apenas em reuniões esporádicas ou ignorados completamente.

Nós, pelo menos, não recebemos a consulta prévia. Gostaríamos de entender o motivo disso, que também pertencemos a estas comunidades”, indagou Raimunda dos Santos, representante da comunidade de Cajazeiras, na audiência pública realizada na Vila Tauri. Mariclea Gomes, residente da Vila Porto Novo, apoiou a reclamação sobre a exclusão: “Estamos aqui para perguntar ‘por que não estamos inclusos?’ Pedimos que se realize a consulta prévia de forma livre e adequada, para que possamos ser ouvidos, pois a nossa presença é importante.”

A diferença entre uma entrevista comum e uma consulta verdadeira foi um aspecto importante destacado pelas comunidades e pelo Ministério Público Federal. Durante sua declaração, o procurador da República Sadi Machado apontou uma das possíveis razões para a ausência da consulta: “A consulta implica que a comunidade tem a liberdade de dizer não. Portanto, é por isso que a comunidade não está sendo consultada. Ela está sendo pesquisada, entrevistada. O Dnit chegou a mencionar em uma audiência pública no Senado Federal que teve uma conversa informal com as comunidades. Conversar não é o mesmo que consultar.”.

Essa visão foi validada pelo pescador Erlan Moraes, integrante da Comunidade Agroextrativista Ribeirinha Praia Alta, que mencionou ter participado de encontros isolados. “Foi essencialmente para apresentar o que conhecemos”, disse ele. O procurador da República Rafael Martins da Silva indagou: “Mas você foi o único?”.Na comunidade, fui só eu”, respondeu Moraes, destacando a ausência de um diálogo mínimo com os demais membros da comunidade.

 

CONSIDERAÇÕES DO MPF

Concluída a inspeção judicial, os representantes do MPF presentes à atividade consideraram o desfecho como um ponto crucial para o andamento do processo. A opinião coletiva é de que a passagem pelas comunidades confirmou, na prática, os pontos que o MPF defende desde o começo da ação civil pública.

De acordo com o procurador da República Rafael Martins da Silva, a visita foi fundamental para que o Judiciário pudesse perceber a situação real das comunidades. “O MPF pediu que o Juízo visitasse essas áreas (…) para que pudesse entender o que o MPF já vinha notando desde 2023. O MPF constatou que essas comunidades foram ignoradas por esse projeto; isso significa que não foram consultadas, e as poucas que tiveram a oportunidade de se manifestar não tiveram sua forma de vida devidamente considerada. Elas serão seriamente afetadas por esse empreendimento”, destacou. Ele finalizou afirmando que, com as evidências reunidas, o MPF espera que o Judiciário aceite o pedido de anulação das licenças do projeto.

O procurador-chefe do MPF no Pará, Felipe de Moura Palha, enfatizou que a verificação reforçou os argumentos principais da ação. “A avaliação judicial evidenciou o que o Ministério Público já tinha reiteradotempos: a relevância da consulta prévia de maneira livre e informada, até mesmo para entender a extensão dos efeitos nas comunidades. As declarações das comunidades deixaram claro que não houve estudos sobre a pesca, as rotas de pesca, as espécies de peixes e o comportamento dessa prática”, afirmou.

Ele destacou também como o saber popular supera a vulnerabilidade das investigações oficiais: “As comunidades mostraram, por meio de seu conhecimento tradicional, todos os efeitos que elas já preveem que esta obra causará. Portanto, o MPF reitera a relevância de o Juízo visitar a área da obra, para evidenciar a presença de comunidades tradicionais nas proximidades do Pedral do Lourenção, que estão subavaliadas nos estudos do Dnit, e que os impactos, especialmente na sua principal atividade, a pesca, não foram estudados de forma adequada.”

O procurador regional da República Felício Pontes Jr. enfatizou a relevância tanto processual quanto humana da diligência. Ele afirmou: “É fundamental que, em um processo coletivo, o juiz tenha a oportunidade de escutar a comunidade que possui os direitos afetados. Um desafio inerente aos processos coletivos é que, embora o Ministério Público atue em nome dessas pessoas, elas não estão presentes na ação. Uma maneira de o juiz conhecer essas pessoas é por meio da inspeção judicial. Isso ajuda bastante na compreensão do juiz acerca da magnitude do problema que precisa ser julgado e, principalmente, dos efeitos que suas decisões podem ocasionar.”.

Ao final, o procurador da República Sadi Machado destacou que o trabalho do MPF busca assegurar que os equívocos de grandes iniciativas anteriores não se repitam. Não há como alcançar justiça nesse processo sem antes consultar, de forma livre e informada, as comunidades que podem ser afetadas. Além da consulta, é fundamental realizar um diagnóstico preciso sobre os possíveis impactos, para que assim possamos avaliar os riscos envolvidos“, afirmou. “Celebramos a iniciativa do Poder Judiciário de se voltar para a comunidade ao conduzir essa audiência pública e efetuar a inspeção judicial, pois é essencial que o juiz compreenda claramente as aspirações e necessidades da população. Sem essa compreensão, a justiça ambiental e a justiça climática não poderão ser estabelecidas.”

Ao término da fiscalização, o juiz expressou sua gratidão pela colaboração da Subseção da Justiça Federal de Marabá, do Ministério Público Federal, do Exército e das Polícias Federal e Militar, que desempenharam um papel fundamental na organização logística das atividades, incluindo a audiência em Santa Terezinha do Tauiry e as reuniões na Vila Saúde e na Ilha Pimenteira.