A tarde de sábado, 29, passo ao lado de meus pais, João e Lourdes. Papai se mostra revoltado com o que ouvira do amigo e ex-trabalhador dele nas matas da castanha, “Paraíba”, narrando o cenário atual da região do Rio Vermelho, afluente à direita do Itacaíunas onde os dois viveram praticamente suas vidas extraindo a amêndoa e plantando árvores frutíferas nas colocações trabalhadas. Meu pai é um desses amantes do hábito de cavucar o chão para plantar árvores.

“Se plantar, sempre tem.”

A frase, João fala com freqüência, até hoje,ensinando a lógica de quem vive nas florestas.

Semi-analfabeto, meu pai escreve malmente o nome, cheio de garranchos. Eu adorava ler, entre gaitadas sonoras -, os bilhetes que ele escrevia para minha mãe ou endereçados a algum trabalhador dele enfurnado nas matas. Permeados de confusa troca de Ç por dois S, tinham de tudo, menos acentos, pontuação, e assim por diante.

Ao chegar a Marabá lá pelos idos anos 60 vindo do Maranhão, “Paraíba” me conheceu quando eu tinha 7 anos de idade. Até hoje não lhe perguntei por que um maranhense carrega o apelido de “Paraíba”. Abobado e nem pagador de mico ele nunca foi. Pelo contrário, é um daqueles castanheiros de pouca vivência na cidade, mas profundamente interessado em saber de tudo. Não se movimenta sem um rádio a acompanhá-lo. Sabe nomes dos presidentes de quase todos os países, o que se discutiu no Congresso Nacional, as últimas novidades da ciência no combate ao câncer, o processo de degelo na Antártida, etc.
Recordo com todas as cores uma frase do “Paraíba” dita por volta de 1987, ao constatar no dia a dia que a caça começava a exaurir-se:

– “Seu” João -, conversando à noite com meu pai, deitado numa rede próximo a minha -, faz tempo que não dou de cara com um bando de Caititu. A causa disso são essas invasões de terra, os bichos estão fugindo com medo das derrubadas. Não dou mais dez anos para a gente não encontrar nem jabuti aqui no “Sapecado” (ex-terra de meu pai, invadida dois anos depois).

Como eu dizia no início, papai contou que conversara com “Paraíba” na sexta-feira (o amigo dele ainda mora na região do Rio Vermelho numa gleba de 20 alqueires dada a ele pelo velho João).

Ele disse que não encontra mais no Sapecado nenhum tipo de madeira de lei. Derrubaram tudo: sucupira, jatobá,cedro, jacarandá, nem um metro pra guardar de lembrança . Cupu no leite da castanha, nunca mais comeu. Jabuti não existe mais -, contou papai, angustiado.

Falei a ele de uma canção composto por um sujeito chamado “Jatobá” narrando a destruição das matas. Ele se mostrou interessado em ouví-la. Imediatamente fui buscar o CD do Xangai ( Saga Amazônica) em casa, reproduzindo pra ele ouvir “Matança”, a obra-prima de ‘Jatobá’.
Assisti meu pai derramar lágrimas dos olhos, silenciosamente, ouvindo, emocionado, a realidade da letra. Pediu para reprisar a canção várias vezes, o que o fiz.

Meu pai tem 78 anos e nunca mais pisou os pés na floresta. Já se vão 20 anos.
Perfeitamente lúcido e sem nenhum problema de visão (ainda não foi preciso usar óculos), ele deseja fazer uma viagem de barco comigo subindo o Itacaiúnas até próximo a sua nascente, percorrer o mesmo trajeto feito por ele centenas de vezes quando, ainda jovem, explorava os castanhais na região do Tapirapé.
Gabola, meu pai garante saber ainda os canais das corredeiras e cachoeiras que permeiam extenso trecho do rio. “Passo até de noite ainda”, vangloria-se. E eu sei que ele saberá cruzar, no leme da embarcação, de noite, os sinuosos canais perigosamente infestados de pedrais.
Vou me organizar para viver essa aventura, levando uma boa equipe para registrar tudo. Pode dar um excelente documentário.