Interessante a imprecisão (e a imprevisão) do caminhar de um texto bem escrito, ou um poema delineado em todos os seus aspectos de construção. Interagir com ele, no próprio contexto dele.

Diante de um texto bem escrito, toda comunicação se faz de forma generosa. Encontro de emoções, lendo-o, ouvindo-o, saboreando-o, interpretando-o.

Assimilando, aceitando-o ou recusando-o.

O poeta, quando cria, sofre. O desgaste desesperado de entranhas.

Helena, ex-companheira de Ademir Braz, num depoimento concedido a mim para documentário de lançamento do livro dele “Rebanho de Pedras”, confessou sofrer junto com o poeta, quando ele entrava em processo de parição. Parição de poema, bem entendido.

– Uns cinco dias antes de começar a escrever, o Ademir se impacienta, anda de um lado a outro da casa, às vezes nervoso, brigando por bobagens dentro de casa. Quando ele fica assim, já sei, está saindo um novo poema. Quanto maior a inquietação, mais belo o poema.

É isso aí; criar um texto é tracejar, desenhar, delinear, modelar, sombrear as cores da existência com as cores do Amor. E sofrer.

A trilogia de Paulo César Pinheiro e João Nogueira ( Súplica, Missa Missão e Poder da Criação) fala disso. O momento raro da criação.

Como nos versos de Minha Missão, aqui na voz da afinadíssima Mariana Aydar, novo talento da MPB da qual já falei em post antigo.

O poder de cantar. Cantar versos lindos.

Quando eu canto
É para aliviar meu pranto
E o pranto de quem já
Tanto sofreu
Quando eu canto
Estou sentindo a luz de um santo
Estou ajoelhando
Aos pés de Deus

Canto para anunciar o dia
Canto para amenizar a noite
Canto pra denunciar o açoite
Canto também contra a tirania
Canto porque numa melodia
Acendo no coração do povo
A esperança de um mundo novo
E a luta para se viver em paz!

Do Poder da Criação
Sou continuação
E quero agradecer
Foi ouvida minha Súplica
Mensageiro sou da música
O meu canto é uma missão
Tem força de oração
E eu cumpro o meu dever
Aos que vivem a chorar
Eu vivo pra cantar
E canto pra viver

Quando eu canto, a morte me percorre
E eu solto um canto da garganta
Que a cigarra quando canta morre
E a madeira quando morre, canta!

O bom texto não se deixa aprisionar, em nenhuma forma rígida, em nenhuma idéia morta, em nenhuma identidade preguiçosa. Nem o texto. Nem os versos.

Sinta bem fundo, a beleza disto aqui:

De que adianta saber que lhe ateio
tremores na carne
calores nos seios
se todas as tardes
me odeio por não ter você?

São versos de A Gente Quase Não se Vê, de Celso Viáfora, esse craque paulista que adora o Pará e seus melhores criadores, entre eles Nilson Chaves.

O pavor da distância. A falta de pele em pele. O querer sentir suspiros, gemidos e calor.

De que adianta saber
que você treme só de pensar em dormir na minha cama
se a gente quase não se vê?
De que adianta escutá-la
dizer que me ama
pelo telefone
sozinho na sala
morrendo de fome
pensando em você?
De que adianta gritar por e-mails
diversas palavras bonitas
escritas
invés de vir aqui me dizer?
De que adianta saber que lhe ateio
tremores na carne
calores nos seios
se todas as tardes
me odeio por não ter você?
Era melhor ser alguém que gostasse pouco
mas que todas as noites, feito loucos
a gente pudesse chegar
pudesse se amar
e, depois, fritar um ovo
tomar um saquê
olhar a TV
dormir no sofá
pra quando acordar
a gente se amar
tudo de novo

É bom chegar ao êxtase de voar no meio de palavras, de se tocar e ser tocado.

Escorrer tinta e chorar imagens de pura emoção. Na moldura de um bom texto, nos deixamos fundir, como numa queda livre de nuvens e azuis, tinta fresca e palavra nova, inventada no gozo expandido de todos os sentidos da criação.

Usar palavras no emaranhado do texto, poder de criação.

Não sou poeta, porque não cabe em mim, tanto poder. Mas gosto de descobrir a beleza do poema.

Ritmos. Texturas.

Cores e matizes. Cheiros e intervalos. Inflexões.

Até letra de música ingênua, bem cantada, com arranjos criativos.

Não importa de onde venha.

Paulo Borges, por exemplo, compôs nos anos 50, Cabecinha no Ombro, falando de carinho e solidariedade, que na voz de Almir Sater transforma-se em obra-prima do canto regional.

Quando se fala em viola normalmente se pensa em música sertaneja e quando se fala em sertanejo normalmente se pensa em cornomusic. Igual aquelas ilusões de ótica em que a palavra verde está escrito em vermelho.

Almir Sater prova que isso não é verdadeiro.

Criativo artista surgido de dentro do rock, todo mundo pensa que ele é sertanejo,totalmente pop. E não é!

Numa entrevista à CBN, numa madrugada aí pra trás, o matogrossense declarou que é puro roqueiro, que não escuta música sertaneja nem em casa.

Mas escuta violeiro pontear a viola e não tem nada a ver com sertanejo.

Em verdade, todo violeiro é instrumentista, é bandeira brasileira.

Já escutaram Tião Carreiro ponteando viola? É puro rock’n roll, de boa pegada.

Neste domingo, quero que você encosta a sua cabecinha e sonhe. E cante. E seja feliz.