Em meio a pensamentos de confete, o amor fantasiado de cigana.

Terminar a noite numa cama, é o que se pede mais rápido. Os dois, arrepiados de salivas.

Com jeitinho, tira-se a fantasia. Usando dentes, enquanto o sono não chega nesta terça de carnaval.

De longe, dentro do meu carro que paro na lateral da avenida, observo o casal trôpego. Um querendo segurar o outro.

Foi bom te ver outra vez, está fazendo um ano,
foi no carnaval que passou…


Mais longe ainda, escuto uma bandinha dissonante formada por metais (instrumentos de sopro) tentando tocar marchinhas antigas de carnavais antigos, mas são 6 horas e o resultado é o pior possível.

Músicos amanhecem bêbados de tocar a noite inteira.

Enquanto os ponteiros do relógio no alto do prédio da VP-8 não param de andar, os músicos querem ir pra casa.

No vazio do embalo coxo de uma dança coxa com poucos movimentos, calam-se juras carnavalescas. Cigana inamável travestida de amante.

Mas mesmo fantasiados, não se pode amar.

O casal não se agüenta em pé e senta-se no banco da praça da prefeitura.

Eu sou aquele pierrot,
que te abraçou, que te beijou, meu amor…

O sol já faz barulho de expectativa.

Duas crianças aparentando oito anos olham a cena obscena dos adultos. Não tiram os olhos do banco da praça enquanto a mãe sai puxando-as pelas mãos.

Devem ir à Igreja evangélica mais próxima. Em cada esquina existe uma.

Sentados no banco da praça, o casal esfaqueia sombras. A mão de um passeia os seios da outra.

A mão da outra penetra a braguilha do parceiro aberta pelo desejo de serem reconhecidos pela própria emoção.

É engraçado fotografar personagens de festas de carnaval. Cegos andantes de uma enxurrada de sonhos noturnos.

Parece que só brincam, sem ofender a madrugada.

Agarrado a um poste perto da rótula da Verdes Mares, um cidadão de cabelos grisalhos com restos de fantasias no corpo -, tenta urinar. Motoristas em carros passam próximos a ele, ouvindo qualquer coisa ininteligível de nosso andante mijão.

Cai-não-cai, ele segue, seguro de que sua casa não deve estar distante.

No rádio, escuto o locutor lendo convite para o enterro de Francisco Vargas Leite, “que ocorrerá às 10 horas da manhã desta terça-feira, no Cemitério da Saudade, Nova Marabá, e desde já agradecem a todos que comparecerem a este ato de fé e caridade cristã”.

Os antropólogos dizem que em toda passagem há um antes e um depois. Há uma ruptura. Os que fazem a passagem se transformam.

Diante de mim, restos de vidas depois do carnaval. Mas vidas em alegria.

Do outro lado do dial da emissora, a antítese de tudo aquilo “fotografado” pela lente das minhas retinas: o rito da morte.

Travessias perigosas com os riscos que este fenômeno existencial implica. Travessias para o abismo; travessias para a culminância.

A mesma máscara negra que esconde seu rosto,
Eu quero matar a saudade…

Na cidade, o clima mistura sol e chuva.

O sol, tocando surdo. A chuva, reco-reco.

Já na beira do Itacaiúnas, onde estou viçando tomar café com tapioquinha, próximo a casa onde nasceu o Maior dos Poetas marabaenses, Ademir Braz, antes de saltar do carro, observo dois casais “entrudos” rumando fantasiados ladeira abaixo.

Estão exaustos.

Devem buscar o banho de água gelada do rio barrento.

Cura porres homéricos.

O jeito dos quatro é engraçado. Sorrio deles, silenciosamente.

Rua e casas na beira do Itacaiúnas continuam iguais. Nada ali muda. Parece em ritmo de um mundo onde as coisas arrastavam tudo sem ritmo, interior de anos que não passaram, fixos, travados no mesmo lugar.

O cenário deveria pelo menos ter ficado deitado, como os bêbados de carnavais, nos bancos de praças sussurrando nomes antigos. Mas parecem olhos necrosados pelo sentimento do mesmo mundo faminto.

Tão perto, tão colo, tão longe, tão calo, apesar de nosso, que é hoje e sempre.

Tomando café com beiju na cozinha da senhora que faz gostosamente os quitutes, dá para observar os quatro carnavalescos subindo ladeira. Param. Sentam-se na ribanceira íngreme e lisa.

Beijam-se. Molhados de rio barrento.

O Itacaiúnas não é mais o mesmo do tempo do Ademir.

Hoje é mercúrio-rio.

Vou beijar-te agora, não me leve a mal,
hoje é Carnaval! (Zé Keti)