Você corta um verso
Eu escrevo outro
Você me prende vivo
Eu escapo morto

(Pesadelo – Paulo César Pinheiro)

A semana passada foi rica em Oscar Niemeyer. O poster, por afazeres em demasia, não teve tempo de comentar os cem anos de nossa rara espécie de comunista verdadeiramente comunista. Ato contínuo passo a fazê-lo agora, até como fonte de reflexão.

Em quase todos os canais de informação, Niemeyer se apresentou falando de seus cem anos. De todos os depoimentos dele o que mais me impressionou foi no Especial da TV Câmara. Ali deu para medir o vasto conhecimento acumulado por Oscar no período mais fecundo da história do Homem.

Não deixa de ser sedutor fazer-se uma reflexão sobre o século XX, vivido intensamente pelo nosso Arquiteto Maior, mesmo sabendo-se da complexidade de tentar entendê-lo ou explicá-lo por completo.

Se formos analisar cuidadosamente, de fato, todas as facilidades dos dias atuais, que tornam nossa vida muito mais prática, confortável, e repleta de novos acontecimentos, inclusive o fato de o planeta ter-se transformado não numa “aldeia global”, mas numa simples tecla de computador, têm a ver com as conquistas daquele século, mais transformador que todo o restante da história da humanidade junta.

Na entrevista à TV Câmara, Oscar Niemeyer disse, com todas as letras, que viveu intensamente as mudanças registradas, acompanhando-as quase ao vivo, na Europa, morando no Velho Continente ou apenas em viagens por ali. Como sempre, a sensibilidade do arquiteto pode ser medida quando ele questiona se o Homem, no período de 1.900 a 1.999, procurou também aprofundar seus sentimentos, passando a preocupar-se mais com o próximo.

Não é o caso. Apesar das genialidades surgidas no período, o ser humano não melhorou. Apesar de vivermos relativamente em paz, presenciando-se apenas alguns conflitos localizados e os inevitáveis confrontos tribais africanos, foi nesse século que aconteceram os maiores genocídios. Mas não resta a menor duvida de que foi nele também que o talento humano mostrou do que é capaz.

Ao se referir ao fato de que, no inicio do século XX, quando ele acabara de nascer, poucas cidades do mundo possuíam luz elétrica, Niemeyer esqueceu de acrescentar que, no final do mesmo século, ele também presencia a utilidade de um chip de computador do tamanho de uma aspirina armazenando em sua memória todas as imagens da história do cinema. Um paralelo -, para se ter idéia do que ocorreu de surpreendente e efetivamente genial no período de vida centenária do arquiteto.

A mesa redonda que questionou Oscar, na TV Câmara, apesar da competência de seus integrantes, perdeu excelente oportunidade de forçar o entrevistado a fazer um rápido balanço da situação social, tecnológica e cultural no desenrolar do século niemeyano. Deixaram até mesmo de sugar do genial brasileiro como ele viu de perto o surgimento da mais ousada experiência de associação humana, a partir da revolução de outubro de 1917, quando se iniciava a tentativa de criar uma sociedade não baseada na competitividade, no lucro, na vitória do mais esperto – métodos do capitalismo – e sim na solidariedade.

Não resta a menor dúvida de que a coisa caminhava com algum êxito. Apesar de tais idéias subverterem aquilo que o animal tem de mais natural e brutal em seu instinto, o desejo do sucesso individual, o do mais forte sobrepujar o mais fraco, o socialismo foi adotado por um sexto da humanidade na primeira metade do século e por um terço no segundo pós-guerra – e defendido com fervor pelo jovem comunista então com 40 anos de idade.

Dava para ter tirado muito mais coisa do depoimento de Niemeyer, ele que viveu em constantes viagens pela URSS, China, Europa Oriental, exatamente nesse período em que bilhões de chineses aprenderam a comer e na Europa Oriental a vida era modesta, mas nada faltava em termos de emprego, moradia, saúde, educação e cultura. Sem esquecer que a União Soviética chegou a ser o segundo pólo de poder do planeta…
E todas essas mudanças impressionaram muito Niemeyer, tanto que ele se converteu ao comunismo mantendo sua crença nele até hoje.

Tão bom seria ouvir de Niemeyer seu ponto de vista a respeito do porque nada daquilo ter dado certo.

Ao invés de dar flexibilidade, oxigenar o socialismo estabelecendo relacionamento com o resto do mundo, modernizar idéias e métodos à medida que um mínimo ia sendo conquistado, as lideranças da Europa Oriental continuavam impondo o regime fechado, quase escravagista, , vociferavam conceitos pseudo-humanísticos aos quatro cantos, postando-se como profetas redentores da humanidade. Muito mais que a complexidade da idéia socialista, a incompetência desses líderes é que fez ruir, no final dos anos 80, na Europa, essa arrojada e humanitária experiência social seculovinteana.

Aliás, se a inteligentzia que dirigiu o socialismo na Europa Oriental viesse para o Ocidente comandar nossa política e nossas empresas, o capitalismo iria à bancarrota em muito menos tempo…

Com a sinceridade que o caracteriza, Oscar Niemeyer fez um belíssimo apanhado de um vetor na evolução do século XX: o da tecnologia. Ele lembrou que nos primeiros anos dessa era, os feitos da primeira revolução industrial já tinham 150 anos, “e estavam devidamente sedimentados”. Os visionários, porém, que apontavam no sentido de uma segunda reviravolta, a da eletrônica, da automação, da inteligência artificial, “que viria a ocorrer com grande dinâmica, não eram sequer levados a sério” – lembrou nosso arquiteto.

É verdade. Só faltou Niemeyer fazer citações, e talvez não os tenha feito em razão da memória um pouco desgastada pelo tempo. Mas Einstein, ainda que com sua teoria da relatividade e Max Planck com a quântica, tivessem vislumbrado, já no inicio do século, as maiores revoluções científicas de nossa era, um prêmio Nobel de física afirmava, simultaneamente, que “o homem jamais seria capaz de liberar o poder do átomo”. Os próprios irmãos Lumière, vivendo no embalo da delirante Paris do fin-de-siécle, ao inventarem um aparelho que projetava imagens em movimento na parede, chegaram a declarar que aquela engenhoca não tinha o menor futuro. Talvez alguma utilidade na área jornalística… Meliès, que tentou criar uma linguagem dramatúrgica para o cinema, acabou seus dias vendendo balas numa gare de Paris.

Não esqueçamos que um pouco antes, na América do Norte, país que soube entender o século XX como poucos -, se não me falha a memória, lá pelos idos 1895 (bom dar uma checada nessa data) -, o diretor do departamento de patentes enviou seu pedido de demissão ao secretário de estado e comércio, pois, segundo ele, não havia mais nada a ser inventado. Henry Ford lutou para conseguir financiamento para seus projetos de produção em linha de seu carro e o que ouvia dos banqueiros era que “o automóvel é uma coisa passageira e que a carruagem é que é eterna e insubstituível”. Já os irmãos Writgh, após incessantes tentativas no sentido de fazer seu engenho e o homem saírem do chão, 3 anos antes do bem-sucedido projeto de Santos Dumont, declararam que o ser humano não voaria nos próximos mil anos.

A propósito de Santos Dumont, é bom que se diga que, para ele convencer seus contemporâneos na extasiante Belle Époque, que sua máquina voadora era uma realidade, teve que exibi-la, não num campo de provas próximo a um laboratório de pesquisas para uma equipe de cientistas, mas na capital francesa, em forma de happening, dando voltas em torno da Torre Eiffel, com toda a cidade a seus pés, sendo em seguida freneticamente aplaudido, como se fosse intérprete de um gigantesco espetáculo artístico.