Em  24 de dezembro de 1948, jornal A Província do Pará publicava o seguinte  texto, assinado por  A. Gadelha:

 

carlos-gomes

“A placa suja e abandonada não chega a despertar maiores atenções harmonizada como está com a fachada do prédio, à qual se identificou completamente, sentindo, também, a mesma necessidade: limpeza. No entanto, na singeleza daquela inscrição que mundo de coisas transborda vivo, como se a poeira do tempo não fosse suficientemente forte para apagar as grandezas e misérias da alma humana ali redivivas nas páginas da vida atribulada e triste do nosso gênio da Música. Afirma a placa o sentimento de gratidão do povo campineiro àqueles que souberam compreender e aplaudir Carlos Gomes, no momento em que outros forçavam o genial maestro a se sentir ‘mortificado vivo’.

Confeccionada em bronze, letras em relevo e gravada com esmero contém a seguinte legenda: ‘Aqui faleceu Antonio Carlos Gomes, em XVI-IX-MDCCCXCVI rodeado do carinho dos paraenses. O Centro de Sciencia, Lettras e Artes de Campinas oferece esta placa ao Estado do Pará no primeiro centenário dos nascimento do imortal maestro brasileiro. MDCCCXXXVI-MCMXXXVI – S. Paulo’.

Doze anos depois

Doze anos depois de inaugurada, a placa, que tanto custara para ser colocada, representa para o prédio não o que ela significa em si, mas, simplesmente, um pedaço de ferro velho a enfear a fachada. Isso se deduz do seu estado atual. Mas, a que cabe a culpa?

Certo que o proprietário da casa da travessa Quintino Bocaiuva, hoje plaqueada sob o n° 429 – se ainda o mesmo – estaria coerente com o seu ponto de vista. Ele sempre fora contrário à colocação de qualquer legenda relembrando o óbito do maestro. Para ele Carlos Gomes nada mais era do que um simples inquilino, embora categorizado pelo apoio material e moral que lhe dera Lauro Sodré, então governador do Estado.

Quarenta anos foram necessários para que se vencesse aquela obstinada resistência e, na luta por esse objetivo tomaram parte homens de alta projeção como o intendente Antonio Lemos que se empenhou decididamente para obter permissão do proprietário do imóvel. Todos os esforços resultaram negativos e nenhuma força conseguiu demover o dono do prédio do seu firme propósito de não autorizar a colocação da placa.

Sucederam-se os homens no governo e a questão morreu, renascendo por ocasião das comemorações do centenário de nascimento do inolvidável músico, quando Campinas rendeu o seu tributo de gratidão à terra onde, cercado de todo o carinho e conforto se extinguiu a preciosa vida de seu ilustre filho.

Recordações

Hoje, mesmo abandonada e sofrendo rigores do tempo, a placa de bronze tem o poder de nos levar um passado semi-esquecido. Olhando-a, ao passar, por simples curiosidade, logo nos veio a lembrança do tempo que não vimos, mas  nos fazem pensar num Pará vivo e progressista, onde se desconhecia esta apatia de nossos dias e não apenas se vegetava. Lembramos Belém cheia de brio, ensinando à metrópole como se devia tratar os nossos homens de valor.

Desprezado e Sabotado

Conta o historiador Ernesto Cruz – em cujos livros fomos buscar os dados necessários a este trabalho – citando a ‘História da Música no Brasil’, de Vicenzo Cernicchiaro, que Carlos Gomes sofreu tremenda campanha dos artistas e empresários do Rio de Janeiro, sem que nada fosse feito de parte dos nacionais ajudá-lo naquela luta, resultando de tal movimento as protelações constantes da representação de sua ópera ‘Escravo’. Mancinelli, [ilegível], Bernabel e outros lançaram-se decididamente contra o maestro e compositor brasileiro, encontrando apoio do povo, segundo se depreende do que o próprio Carlos Gomes revela quando diz: “E o nosso público que lhe dá toda importância, é capaz de me mandar matar por ter ofendido o grandiosíssimo príncipe Mancinelli.

Vinda para Belém

Desgostoso e triste, Carlos Gomes encontrou, finalmente!, um braço amigo no Pará. Lauro Sodré o trouxe para Belém, dando-lhe um emprego que lhe assegurava vida digna.

Em Belém, na casa da travessa Quintino Bocaiuva canto com a Tiradentes, o genial músico viu terminarem os seus dias. O seu passamento, sentido por todos, ficou gravado na tela pelo pincel de De Angelis, num magnífico quadro, hoje na pinacoteca da Prefeitura Municipal.

A casa onde ocorreu o óbito passou a constituir relíquia histórica e nela se comemorou em 1936 com significativa cerimônia o transcurso do centenário de seu nascimento ocasião em que foi solenemente inaugurada a placa de bronze enviada pelo Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas.

Foi aquela a última homenagem prestada ao autor de ‘O Guarani’. Depois dela nada mais se fez, nem sequer para conservar a casa e a placa comemorativa, não obstante seja esta última considerada relíquia histórica e incluída por todos os historiadores entre os monumentos de Belém.

Em nossos dias, a casa 429 é um pardieiro abandonado e desabitado que ali se findou uma existência e somente os mais curiosos sabem gloriosa”

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Nota do blogueiro: o prédio da foto acima, onde morreu Carlos Gomes, em 16 de setembro de 1896, cercado por autoridades e amigos, com o governador Lauro Sodré à cabeceira, não existe mais – óbvio, numa cidade que sempre desrespeito sua memória

Exatamente há 120 anos, nessa esquina da imagem histórica,  o compositor nascido em Campinas (SP) morria no bairro da Campina, cuja localidade Carlos Gomes amava percorrer suas ruas.

Hoje, a esquina da Quintino com a Tiradentes dá lugar a um prédio de 15 andares oportunamente designado de “Guarani”, em homenagem a ópera que imortalizou o genial músico brasileiro.